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quarta-feira, 27 de abril de 2022

KISS — PORTO ALEGRE, 26 DE ABRIL DE 2022

Gene Simmons.Foto: Zé Carlos de Andrade
Por Márcio Grings Fotos Ton Müller | Zé Carlos de Andrade 

"Você está em um circo psicopata, e eu digo bem-vindo ao show! diz o guitarrista Paul Stanley, no refrão de Psycho Circus. Retirada de contexto, a sentença — uma tradução livre do original em inglês—, a letra nos dá um panorama dos tempos de hoje: guerra, inflação, negacionismo, polarização, pandemia e, pelo lado positivo, a retomada dos eventos culturais de maneira presencial e, praticamente, sem restrições. Entre os exemplos deste último item estão as apresentações musicais ao vivo, como é o caso da derradeira turnê do quarteto mascarado mais famoso do showbusines, batizada apropriadamente como End Of The Road Tour". O texto do jornalista Homero Pivotto Jr, publicado no Scream & Yell dá o tom dessa volta aos grandes shows, fala do cenário atual e ainda anuncia a grande atração da semana no Rio Grande do Sul. 
 
Paul Stanley. Foto: Zé Carlos de Andrade

Dois anos, cinco meses e quatro dias após o último show assistido — Gene Birdlegg Pittman, em 22 de novembro de 2019, no Plataforma 85, em Santa Maria/RS e, dois anos, seis meses e dezessete dias depois de um último megaevento ligado ao rock internacional em Porto Alegre — Iron Maiden, 9 de outubro de 2019, no Beira-Rio, eis que os tempos pandêmicos (aparentemente) ficam para trás, pois cá estou  prestes a ver o KISS subir no palco montado na Arena do Grêmio.

O pouso forçado rumo ao ostracismo não estava nos planos de ninguém e, assim, todos sentimos o impacto desse interminável e horroroso hiato, uma bolha ao qual ficamos aprisionados e afastados da prazerosa sensação do som batendo no peito. Prova disso está no próprio show que marca esse retorno. O KISS inicialmente se apresentaria em maio de 2020, mas teve sua data remarcada para novembro daquele ano e, após vários vai e vens, finalmente cravou sua bandeira neste tão esperado 26 de abril de 2022. 


Eric Singer. Foto: Ton Müller 

Se estávamos saudosos de assistir as lendas do rock mundial, a sensação de despedida paira sobre a End of the Road Tour, anunciado Canto do Cisne de uma das bandas mais idolatradas da história. Na atual formação, além dos membros formadores Paul Stanley (voz e guitarra) e Gene Simmons (voz e baixo), cá estão Tommy Thayer (guitarra e voz de apoio) e Eric Singer (bateria e voz), quarteto que faz às honras e dá adeus com um repertório repleto de clássicos. Após passagens por Santiago (CHI) e Buenos Aires (ARG), o KISS começa a perna brasileira da turnê pela capital gaúcha. 

Foto: Ton Müller

E se esperávamos pompa e circunstância, o KISS não nos decepciona. Quando a cortina cai, logo após ouvirmos o playback de "Rock and Roll" do Led Zeppelin, os músicos descem do alto do palco em pequenas plataformas voadoras e, ao vê-los, a impressão é de estarmos de volta aos anos 1970. Eis um dos grandes méritos das máscaras — atrás do disfarce kabuki, eles continuam eternamente jovens, congelados no tempo, mas sempre dispostos a nos incitar ao prazer da diversão. Direto da máquina do tempo, mesmo sem a presença dos renegados — Peter Criss e Ace Frehley —  a magia se materializa e o circo se ilumina com muito foguetório e explosões. 
 
Tommy Thayer. Foto: Ton Müller

Pense numa abertura perfeita... "Detroit Rock City" é uma das músicas que alargou as fronteiras do KISS. Quatro entidades brilham no palco: The Starchild, The Demon, Spaceman e The Catman. seu cartão de visitas é a abertura de "Destroyer", um dos responsáveis por colocar o grupo em outro patamar. Não por acaso, cinco temas do atual setlist são pinçados deste disco. Se você olhar para o público, há um exército de mascarados misturados à multidão, milhares de sorrisos multiplicados aos 20 mil que compareceram nessa festa de despedida. "Detroit Rock City" é a gasolina de avião que deixa o público voando baixo rumo a "Shout It Out Loud". Inspirada incialmente na letra de uma canção inofensiva dos Hollies, "I Wanna Shout It Out Loud", transformou-se num dos pilares das apresentações do grupo. O início não poderia ser melhor, pois a régua está alinhada por uma das obras-primas do rock mundial.

Gene Simmons. Foto:Ton Müller

Não por acaso, centenas de vezes "Deuce" foi utilizada como abertura nos shows e, de tão emblemática, eventualmente virou figurinha repetida no bis. Nesse retrospecto de várias épocas do KISS, Paul Stanley dança, faz pose para as câmeras, ecoa (como um mantra)  o nome da cidade dezenas de vezes (Pôrta Alegrue!) e atua como se estivesse filmando um videoclipe ao vivo. "War Machine" é pura potência, um rolo compressor que nos atropela como uma massa sonora. Igual um personagem das HQs, a figura demoníaca de Gene Simmons desfila com sua fábrica de clichês responsáveis por transformá-lo numa lenda: língua de fora, olhar ameaçador, cusparadas, a postura de um gladiador do rock que trata seu baixo como se fosse um machado na mão de um carrasco, pronto a decepar uma cabeça. 

Gene Simmons e Thommy Thayer. Foto: Zé Carlos de Andrade

Quem viveu os anos 1980 certamente nunca esquecerá da onda glam metal e, "Heaven’s On Fire", por exemplo, pode ser facilmente incluída nesse caldeirão. Se a voz de Stanley não é mais a mesma, os vocais de apoio sustentam a base e dão equilíbrio no refrão. Além das duas vozes principais, Eric Singer e Tommy Thayer produzem uma camada de backings afinadíssima, digna da tradição do KISS. Gene Simmons disse a seus biógrafos que o riff de guitarra de "I Love It Loud" foi inspirado de "My Generation" do Who, mas foi transmutada em outra coisa. Contudo, é a levada de bateria que traz a marca registrada do tema de "Creatures of the Night" (1982). O público grita alto o refrão, mas quem brilha em todas as pontas é o baixista,  celebrando os acordes finais com um cusparada de fogo para o alto que acende uma lança. Os fãs o ovacionam enquanto ele crava o objeto incendiário num alvo em frente ao palco.        

Foto: Zé Carlos de Andrade

"Say Yeah"
é uma das poucas faixas aproveitáveis de "Sonic Boom" (2009) e, entra muito bem neste modelo de show, como retrospecto, mas é uma música menor. Já "Cold Gin" tem a marca dos anos iniciais do KISS, característica reforçada pelo telão central que reproduz imagens em preto & branco do show, uma captação trêmula que simula vídeos antigos e amplia essa sensação de que o tempo não passou (ou que fomos transportados para o passado). Tommy Thayer brilha no palco, e ancorado apenas pela bateria e por imagens espaciais de ficção nos telões, faz um solo digno de espelhar o material de grandes guitarristas que passaram pelo KISS, nomes como Ace Frehley, não apenas um celebrado guitar hero do seu tempo, mas o Spaceman original. 

"Lick It Up" é lembrada pelo seu videoclipe (que hoje soa engraçado e caricato), mas também simboliza como o KISS se moldou aos anos 1980, num dos audiovisuais mais icônicos daquele período — sem as máscaras, quando para muitos, o mistério e o fascínio do grupo já havia evanescido. Ao vivo, hoje, representa uma fração legítima do espólio do quarteto — sucesso absoluto quando bate no coração dos fãs. O jogo das guitarras de Paul e Thommy é um dos destaques dessa versão ao vivo, com dinâmicas que proporcionam outras camadas ao original de estúdio, incluindo uma citação a "Won't Get Fooled Again", do The Who. "Calling Dr. Love" é um atestado da cafajestagem das letras de Gene Simmons — "Garota, eu sei qual é o seu problema/ O primeiro passo da cura é um beijo". Aos 72 anos, ainda é incrível de vê-lo tão perto e com tanta energia. "Tears Are Falling" teve inspiração em "Would I Like to You" do Eurythmics, mas também bebe em "Uptight" de Stevie Wonder. Thommy faz um dos melhores solos de guitarra da noite e o quarteto canta em uníssono o refrão. A vibração do público atesta que o show está rumo ao pico.         
Gene e Paul. Foto: Ton Müller

Puro comeback special do final do século XX, "Psycho Circus" é a volta do KISS às origens na batida de tempos apocalípticos. O telão ilumina o palco com cores vivas e nos relembra a turnê homônima de 1999, com passagem pelo Rio Grande do Sul. É uma das músicas mais potentes desses anos finais do grupo, um triunfo que reluz ao vivo e na garganta dos fãs. Logo depois, Eric Singer mostra seus dotes e a bateria flutua e sobe num elevador até o alto do palco. De volta ao primeiro álbum, "100,000 Years" prepara o terreno para o momento mais sacrílego da noite.   

Composta por Paul Stanley, "God Of Thunder" ironicamente se tornou uma das marcas de Gene Simmons. O solo de baixo que antecipa a música, faz as vezes da trilha-sonora de um filme de terror, sonoridades que emulam espíritos, monstros, pesadelos. Olho para o rosto de Gene e ele parece o personagem de Gary Oldman em "Drácula de Bram Stoker" (1992), principalmente quando o sangue (de brincadeira) escorre pela sua boca. Seria assustador, caso essa imagem invadisse o seu sonho. Ali, no púlpito, tudo é circo e diversão. O baixista canta do alto do palco, suspenso por uma plataforma, como se fosse um totem maligno observando os meros mortais. Girando a bola, Paul Stanley pega carona num 'teleférico' e voa por uma tirolesa até o meio da pista para delírio de outros setores do estádio, pois o ídolo se aproxima de locais mais distantes do centro dos acontecimentos. Lá, no meio da massa, ele canta "Love Gun", uma das essências musicais do Kiss e marca registrada da ligação com o imaginário do rock setentista norte-americano. Na mesma posição, ainda com o publico virado de costas para o palco central, Starchild segue conquistando nossos corações. Se na era da discoteca os Stones nos ofereceram "I Miss You" — como uma música digna de figurar nas pistas de dança —, o KISS nos deu "I Was Made For Lovin’ You", sucesso absoluto de público na Arena, instante em que o estádio treme em alto e bom som. "Black Diamond" revela que o talento de Eric 'Singer' vai além das baquetas e faz jus ao seu nome. Todos somos sacudidos em mais um número com o DNA inimitável dos mascarados. Enquanto isso, o telão relembra imagens do grupo nos anos 1970 — lá estão Paul, Gene, Ace e Peter, o que empresta um sabor de adeus e ainda mais saudosismo a essa despedida anunciada.     

Foto: Zé Carlos de Andrade

No bis, Eric segue em destaque, solitário, à frente de um piano no centro do palco. Quando vemos os vídeos dos anos áureos do KISS, com Peter Criss cantando "Beth", canção que compôs (com uma ajuda providencial de Bob Ezrin), eis um dos momentos em que a visão do atual baterista cantando, nos induz a pensar que estamos frente a uma banda cover. Mas Eric consegue dar um sabor especial a essa reprise, pois trata-se de uma das baladas mais amadas de um tempo que insiste em permanecer conosco, mesmo quase 50 anos depois. "Do You Love Me", parceria de Paul Stanley com Kim Fowley (o homem por trás das Runaways), é a glorificação do rock, apoteose de capítulo final de "Destroyer". Da melhor forma possível, é o tema que nos leva à serpentina, quando balões gigantes com o logo do grupo começam a despencar sobre todos nós e nos damos conta que o fim da festa se aproxima. "Rock And Roll All Nite" é tudo que precisávamos depois de tanto tempo longe dos shows, um superdose de adrenalina no coração dos amantes do rock and roll. 

Quando penso que aquela narração que ouvimos  no início do espetáculo, o que foi vivido há pouco confirma qualquer suposição de que tudo poderia ser conversa fiada ou apenas uma frase de efeito: “You wanted the best, You’ve got the best". Quem não quer o melhor? O KISS novamente nos entregou o seu melhor show. Quem esteve na Arena não tem a mínima dúvida disso. Que a fera descanse em paz... 

Foto: Zé Carlos de Andrade

Louvores a banda de abertura, Hit the Noise, que entregou um ótimo show e apresentou credenciais de maturidade, preparando o terreno para o KISS. Nossa gratidão aos fotógrafos (Ton Müller e Zé Carlos de Andrade) + agradecimento especial pelo suporte, assessoria e credenciamento a Cátia Tedesco (Agência Cigana).

Setlist 

Detroit Rock City
Shout It Out Loud
Deuce
War Machine
Heaven's on Fire
I Love It Loud
Say Yeah
Cold Gin
Lick It Up 
Calling Dr. Love
Tears Are Falling
Psycho Circus
100,000 Years
God of Thunder
Love Gun
I Was Made for Lovin' You
Black Diamond

Bis —

Beth
Do You Love Me
Rock and Roll All Nite

3 comentários:

  1. Relato digno de estar em um segundo volume de Quando o Som Bate no Peito! Sensacional, brou! Captou a atmosfera, que eu imagino, do local! Sensacional!

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    1. Thanks, Sal! Vai sair, 2023, estes são os planos para o segundo volume. Abraço.

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  2. Eu também escrevi sobre este show no meu blog memoriaderoqueiro.blogspot.com

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