Translate

Mostrando postagens com marcador Roger Waters. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Roger Waters. Mostrar todas as postagens

quinta-feira, 2 de novembro de 2023

ROGER WATERS — PORTO ALEGRE, 1° DE NOVEMBRO DE 2023

Crédito: Lucas Alvarenga/ Alva Filmes. Foto: Paulo Corrêa/ No Palco

|
Por Márcio Grings e Lúcio Brancato |

Há muito tempo Roger Waters entrega músicas onde sua intenção é nos fazer pensar sobre a ordem das coisas. Como sabemos, a veia política está no cerne do Pink Floyd, seja de forma indireta, como em discos como "The Dark Side of The Moon" (1973) e "Wish You Where Here" (1975), ou, até mesmo explicitamente, o que está na íntegra de "Animals”  (1977), por exemplo. "The Wall" (1979) seguiu alternando temáticas sociais com dramas existenciais, além de regurgitar traumas da geração baby boomer. Já "The Final Cut" (1983) crava sua âncora temporal na Guerra Fria e num conflito bélico específico — a Guerra das Malvinas/Falklands. Em carreira solo, exceto no seu primeiro trabalho, "The Pros and Cons of Hitch Hiking" (1984), mais brando nas questões políticas — "Radio K.A.O.S" (1987), "Amused to Death" (1992) e "Is This the Life We Really Want?" (2017) são inquestionavelmente alavancados por causas político-sociais. Em suma, o que presenciamos no concerto “This is Not a Drill” é a montagem de uma quebra-cabeças de peças musicais muito bem escolhidas, afinal resumir a despedida dos palcos numa trajetória de tantas décadas entre discos do Pink Floyd e a carreira solo não é uma missão fácil. E aqui mais um mérito do artista, pois ele conseguiu trazer um excelente apanhado contemplando um pouco de tudo.

Ao longo dos anos, os shows de Roger Waters proporcionam para o público uma experiência sensorial completa. O jovem Lúcio, no auge do derretimento coletivo, aos 24 anos, era impactado por um espetáculo de som e luzes como nunca havia experimentado, isso na primeira passagem do baixista pela capital gaúcha, em 2002. Na mesma cidade, exatamente uma década depois, o já quarentão Márcio, aos 42 anos, assistiu boquiaberto a queda do muro como se fosse uma barreira real. E ainda hoje nos maravilhamos pela forma como o artista usa sistemas de áudio imersivos, o surround e outras tecnologias que amplificam todas as sensações possíveis na mente do espectador. Helicópteros, aviões, explosões, gritos de socorro e sintetizadores percorrem o estádio e o nosso corpo nos atingindo de todas as direções. O que vemos no palco integra a plateia fundindo luz, imagem e som, disparando mensagens certeiras onde tudo se complementa. 

Crédito: Lucas AlvarengaAlva Filmes. Foto: Paulo Corrêa/ No Palco

O que está sendo dito nas letras ganha reforços tecnológicos que atingem até quem ainda aparentemente esteja neutralizado frente a espetáculos desse porte. Se no mundo cruel de hoje e de ontem, a justiça muitas vezes não se apresenta, nos shows de Roger Waters ela nunca falha. E quando adentramos esse território artístico, canções tocam nossos corações, mas também reviram — ou reavivam — nossa consciência política. O desenho do roteiro do show cai como um martelo de alerta na cabeça de todos: estamos entorpecidos procurando diamantes brilhosos através de brechas de um muro que nós mesmos construímos. Essa é a vida que você realmente quer?!  

Não por acaso, o aviso que ouvimos em inglês (legendado no telão) logo no início dos shows no Brasil, serve de último alerta aos desavisados, isso na probabilidade de alguém ter caído de paraquedas na Arena do Grêmio. A passagem do tempo se mostrou mais prejudicial à sociedade — e à raça humana como um todo — do que na obra do próprio artista. Emburrecemos a ponto de ter que desenhar por escrito nos telões durante a abertura do espetáculo o posicionamento político existente na carreira do músico inglês há pelo menos 50 anos. 

Assim, depois de Brasília e Rio de Janeiro, Porto Alegre recebe pela quarta vez um show de Roger Waters. A turnê This in Not a Drill quebra com qualquer metáfora, pois além da própria música, tudo está legendado e explicado (como notas de rodapé). Assim, como detentor de uma obra poderosíssima, o ex-líder do Pink Floyd não apenas quer deixar claro que é o mentor intelectual da maior parte das músicas, pois ele nos reforça de seu protagonismo o tempo todo.  

Crédito: Lucas AlvarengaAlva Filmes. Foto: Paulo Corrêa/ No Palco

A apresentação começa com a música que ele se despediu de Porto Alegre há exatos 5 anos, "Confortably Numb". Naquele 30 de outubro de 2018 a chuva forte caiu bem no fim do espetáculo, o que mobilizou a equipe técnica a armar pequenos toldos no palco para proteger os músicos e o equipamento. Desse modo, a apresentação precisou ser encurtada. "Confortably Numb" é um dos temas mais conectados à memória de David Gilmour no Pink Floyd. O solo do guitarrista, por exemplo, é considerado um dos mais épicos da história do rock. Na versão que abre o tour This is Not a Drill, Waters surge de jaleco, empurrando uma cadeira de rodas, ampliando os aspectos claustrofóbicos da letra. O solo da música é sumariamente cortado, aproximando a releitura desse clássico do álbum "The Wall" à experiência de ouvi-la 'restaurada' e próxima ao gospel, ainda mais reflexiva.               

Contudo, qualquer perda de identidade ou tentativa de autossabotagem se evanesce com a suíte "The Happiest Days of Our Lives", "Another Brick in the Wall, Part 2" e "Another Brick in the Wall, Part 3", tocada de maneira fiel ao modelo do disco. Roger está solto no palco, sem o contrabaixo, atuando praticamente como um crooner.  

A banda é irretocável em suas execuções. No grupo base, novamente temos o velho colaborador do Pink Floyd, Jon Carin — piano, teclados, programações, violão, marxófono e vocais; David Kilminster (Keith Emersom e John Wetton) — toca guitarra e baixo; Guy Seyffert (Black Keys, Norah Jones) — colabora na guitarra, baixo e vocais; outra presença importante, Jonathan Wilson (Robbie Robertson, Crosby, Stills & Nash) — assume guitarra, baixo, acordeon e faz vocais principais em dois temas. Completam o time, Robert Walter — Hammond B3 e teclados;  Seamus Blake — saxofone e clarinete; Joey Waronker (Beck, R.EM) — bateria; Amanda Belair e Shanay Johnson estão no vocais de apoio e percussão). 

Logo depois do recorte "The Wall", uma tríade feita de canções da sua carreira solo adentra com contundência o território político. Em inglês, "os poderes constituídos" (TPTB) é uma abreviação utilizada para se referir aos indivíduos ou grupos que coletivamente detêm um domínio específico. "The Power That Be", de "Radio K.A.O.S", é uma manifesto irônico contra os fomentadores da guerra: “They like fear and loathing/ They like sheep's clothing — Eles gostam do medo e da aversão/ Eles gostam de pele de cordeiro —. Ele ainda bate nas extravagâncias da burguesia belicista: "They like a bomb proof cadillac/ Air conditioned, gold taps/ Back seat gun rack, platinum hub caps" — Eles gostam de cadillac a prova de bombas/ Ar-condicionado, torneiras de ouro/ Suporte de armas no banco de trás, calotas de platina — a música segue tão atual quanto naquela segunda metade dos anos 1980, como ainda ganha novo gás nessa versão ao vivo. No telão, Waters paga homenagem personalidades mundiais mortas com diversos tipos de violência, entre elas, a vereadora carioca Marielle Franco.

Crédito: Lucas AlvarengaAlva Filmes. Foto: Paulo Corrêa/ No Palco

Na mesma via, "The Bravery of Being Out of Range", de "Amused to Death", inspirou-se na luta à distância na Guerra do Golfo (1990-1991) como um jogo de videogame, e assim Roger utiliza a ironia e o deboche para calcificar a estupidez de uma guerra: "Hey bartender over here, two more shots/ And two more beers/ Sir, turn up the tv sound/ The war has started on the ground/ Just love those laser guided bombs/ They're really great for righting wrongs/ You hit the target and win the game/From bars 3,000 miles away" — Ei garçom, mais duas doses/ E duas cervejas/ Senhor, aumente o volume da TV/ A guerra começou por terra/ Amo aquelas bombas guiadas a laser/ São ótimas para corrigir erros/ Você acerta o alvo e vence o jogo/ Nos bares, a 3000 milhas de distância —. E não é a mais pura realidade do que você assiste ainda hoje pelos telejornais? Se o Pink Floyd a tivesse gravado não seria um disparate. 

O cantor explicou em entrevista à TV Brasil para o jornalista Leandro Demori que "The Bar", canção ainda não gravada, pode ser entendida como um espaço onde as pessoas partilham suas opiniões e debatem amistosamente as divergências. A letra reflete à frustração de viver em um mundo que parece um zoológico humano. “É um lugar imaginário na minha cabeça, mas é também real. Existem bares em todo o lugar. Nesse conceito, é um local onde você pode tomar uma bebida e encontrar seus amigos e, quem sabe, conhecer estranhos sem medo", explicou Waters. 

"Have a Cigar" é motor de propulsão floydiano onde as guitarra de Kilminster e Wilson espelham tudo aquilo que bem conhecemos dos discos. O trabalho das vocalistas de apoio é sublime, tanto do ponto cênico, mas principalmente nos backings: onde a voz de Waters não chega, Amanda e Shanay encaixam suas vozes sombras e ocupam os espaços. Imagens da primeira formação do Pink Floyd surgem no telão. Procure alguma foto de David Gilmour ou imagem do guitarrista em vão em "Wish You Were Here", nenhum resquício será encontrado. Aqui é a hora e a vez de Syd Barrett, a mente criadora do início de tudo para o grupo, de onde veio até mesmo o seu nome, pinçado de dois músicos de blues. A seguir, Amanda e Shanay continuam brilhando, e a magia segue fluindo em "Shine on You Crazy Diamond" (parts VI-IX). A imagem de Jon Carin nas teclas premia um dos grandes escudeiros do Pink Floyd, mas que também já trabalhou com Waters e Gilmour em ambas carreiras solo. As meninas dançam e o sax de Seamus Blake é absolutamente idêntico à lembrança memorial deste clássico. 

Em "Sheep", a fantástica viagem da ovelha voadora agita o público. Na penúltima faixa da jornada de “Animals”, Waters se volta à servil classe trabalhadora: “Hopelessly passing your time in the grassland away/ Only dimly aware of a certain unease in the air” — Passando meu tempo no pasto distante. Vagamente atento a um certo desconforto no ar” —. Aqui a discussão está baseada na passividade em aceitar o destino de exploração, de fechar os olhos para as mazelas e seguir adiante, desprezível e inofensiva como um ovelha sendo guiada por um entediado pastor rumo a desolação. 

Crédito: Lucas AlvarengaAlva Filmes. Foto: Paulo Corrêa/ No Palco

Após um intervalo de 20 minutos, agora é o porco voador que flana sobre nossas cabeças, antecipando uma segunda parte da noite ainda mais emoções. As críticas destinadas a "In the Flesh" e sua ambientação teatral surtiram efeito. O desenho cênico da música foi drasticamente alterado, um dos pontos negativos da perna brasileira da turnê This is Not a Drill, pois tratava-se de um dos picos do espetáculo. As roupas anteriores de Waters — um casaco preto com braçadeiras vermelhas — lembravam o uniforme de um oficial da SS, o que lhe causou problemas, apesar de não ser uma novidade em seus shows. Na verdade essa encenação reprisa o astro do rock de "The Wall" interpretado por Bob Geldof, que após uma overdose enlouquece feito um ditador num comício fascista, com o público o apoiando. Agora, Roger surge numa cadeira de rodas e preso a uma camisa de força, empurrado por enfermeiros. O anticlímax se esvai com a sequência em "Run Like Hell", um dos momentos mais guitarrísticos do show e mais uma daquelas músicas indissociáveis à memória de David Gilmour (ele inclusive a tocou na mesma Arena 8 anos antes). Novamente a dupla de guitarristas não deixa dúvidas de sua capacidade de materializar à lembrança fidedigna do Pink Floyd. 

"Déjà Vu" é um dos eixos centrais em "Is This Life We Realy Want?", quando Roger se coloca na posição de Deus: “If I had been God, I would have rearranged the veins in the face to make them more resistant to alcohol and less prone to aging” — Se eu fosse Deus, teria redesenhado as linhas do rosto para torná-las mais resistentes ao álcool e menos propensas ao envelhecimento, canta. Frente a atrocidade humana, exibindo imagens de palestinos e de cidades devastadas pelas guerras, um questionamento do movimento cíclico da humanidade e sua capacidade de repetir os mesmos erros: "The temple's in ruins/ The bankers get fat/ The buffalo's gone/ And the mountain top's flat/ The trout in the streams are all hermaphrodites/ You lean to the left but you vote to the right" — O templo está em ruínas/ Os banqueiros continuam ricos/ O búfalo se foi/ E o topo da montanha está plano/ As trutas nos córregos são todas hermafroditas/ Você se inclina para a esquerda, mas vota na direita. Julian Assange ganha destaque no telão. Ao vivo, "Déjà Vu" se impõe como uma de suas melhores canções deste século. 

"Is This the Life We Really Want?", faixa-título do seu quinto álbum de estúdio, emula uma conversa do presidente Donald Trump com Jim Acosta, da CNN: "The goose has gotten fat/ On caviar and fancy bars/ And subprime homes and broken homes/ Is this the life, the holy grail?/ It’s not enough that we succeed/ We still need others to fail" — O ganso engordou/ A base de caviar, bares chiques e ossos hipotecados/ E lares destruídos/ É essa é a vida ? O cálice sagrado?/ Não é o suficiente nós termos conseguido?/ Ainda precisamos que os outros falhem —. Como um filme ou um documentário musical da Netflix, Para que não haja dúvidas da entrega total da mensagem que está nela, a música inteira é legendada em português. 

Na parte final, é emocionante sabermos que o Lado B de "The Dark Side of the Moon" é tocado na íntegra na atual turnê. "Money", "Us and Them", "Any Colour You Like" (com destaque para o duelo alternância dos solos de guitarra entre Kilminster e Wilson), "Brain Damage" e "Eclipse" soam como uma grande epopeia musical, em irretocável participação dessa banda com 10 integrantes que reproduz ipsis litteris um dos ‘discos entidade’ da cultura pop mundial. Pingos tímidos de chuva começam a pipocar timidamente pela abóbada da Arena. Será que novamente teremos o abreviamento do show?

Ainda há tempo... Depois de sermos sabotados pelo tempo ruim em 2018, finalmente Porto Alegre tem a sua versão de "Two Suns in the Sunset". Logo ouvimos o barulho de carros cruzando e o violão puxando o riff com a banda vindo atrás. A releitura ao vivo é mais lenta, reflexiva, semelhante ao vídeo lançado durante a pandemia. O audiovisual de animação no telão mostra uma viagem tranquila de um viajante solitário vista de cima, como se fosse filmada por um drone. Até que explosões nos lembram que o holocausto nuclear finalmente aconteceu. 'Two Suns' joga luz na despedida de Roger Waters do Pink Floyd, e num dos discos mais controversos da banda, "The Final Cut", mas certamente envelheceu com dignidade e continua a dar seu recado sobre os desvarios da humanidade. A chuva não veio e o baile segue. 

Antes de cantar a ainda inédita "The Bar (Reprise)", o músico reverencia sua esposa, o irmão morto recentemente e Bob Dylan, fonte de inspiração para a nova canção. No tema, Roger revisita trechos de canções de Bob como "Sad Eyed Lady of the Lowlands", Lay Lady Lay" e "Blowin' in the Wind", além de "The Long and Winding Road", dos Beatles, pegando o mote das letras e reescrevendo-as como um hino pacifista. A banda toda se aproxima do piano, como se realmente estivesse tocando informalmente num ambiente de bar. Até que em "Outside the Wall", ele nos relembra do final da turnê de "The Wall" (é o mesmo desfecho), quando os músicos vão sendo apresentados um a um, saindo em fila única, ao estilo de New Orleans, como se estivem desfilando numa second line tocando instrumentos acústicos. Os saltimbancos dão adeus, embarcam na espaçonave e deixam o palco como se fossem passageiros de ônibus estelar... para nunca mais retornar? 

A grande importância de testemunharmos algo que infelizmente será comum daqui pra frente — a despedida de gigantes da música — é principalmente perceber o carinho deles com o público. Assim como Roger Waters, tantos outros já poderiam estar fora de cena, possivelmente desfrutando da perigosa sensação de dever cumprido. De todo o modo, as novas gerações continuam redescobrindo sua obra e a reavivando. É surreal pensar que lá se vão 21 anos desde nosso primeiro encontro com o ex-Pink Floyd. Quem diria que depois daquele show de 2002, no Estádio Olímpico, em Porto Alegre, ainda veríamos ele novamente na mesma cidade, com dois shows no Estádio Beira-Rio (2012 e 2018) — e agora na Arena do Grêmio. Depois de duas décadas, enquanto o local do primeiro show está abandonado e em ruínas, o artista nos holofotes segue firme ainda derrubando muros — aos 80 anos! 

Instantes depois do show, uma chuva torrencial deságua em Porto Alegre. Lavamos a alma.

Agradecimento especial a Paulo Correa/@nopalcors (fotos) Bia Fraga/@bonustrack.live e pelo suporte e convite. 

Crédito: Lucas AlvarengaAlva Filmes. Foto: Paulo Corrêa/ No Palco

quarta-feira, 31 de outubro de 2018

ROGER WATERS - PORTO ALEGRE, 30 DE OUTUBRO DE 2018

Fotos: Fábio Codevila
Review Márcio Grings Fotos Fábio Codevilla

Pelo menos nos últimos anos, nenhum tour mundial em curso pelo país gerou tamanha discussão e repercussão fora do espectro artístico. Durante grande parte do mês de outubro, Roger Waters incursionou pelo olho do furacão da controvérsia política. E como estava aqui, batendo cartão em nosso quintal, atento aos acontecimentos, praticamente numa posição de 'analista internacional', o músico britânico pôde vivenciar o ambiente de polarização na disputa eleitoral para a Presidência da República. E não apenas isso, como habitual nas suas práticas de militância, ele não se omitiu, não se furtando de hastear sua bandeira de protesto. A turnê Us + Them começou por São Paulo (7), e encerrou três semanas depois, exatamente no show em Porto Alegre (30), pouco mais de 48h após o término do pleito eleitoral. Além de uma data extra da capital paulista, o ex-Pink Floyd ainda tocou em outras seis metrópoles. Por importantes fatores extra-musicais, antes de falarmos do último show da perna brasileira da turnê, é necessário um breve resumo das ações até a derradeira apresentação na capital gaúcha.

Relembre a passagem anterior de Roger Waters pelo RS - Beira-Rio, 25/03/12

Foto: Fábio Codevilla
US + THEM EM CURSO PELO PAÍS - Na atual digressão, que teve início em 21 de Maio de 2017, em Kansas City (EUA), Roger Waters propõe uma mistura entre clássicos da banda que o tornou um dos grandes ícones da música  mundial, com a soma de temas de "IsThis The Life We Really Want?" (2017), seu álbum mais recente. Contudo, sabemos que o ativismo político do artista nunca arrefeceu, permanentemente hasteando sua flâmula pela garantia dos Direitos Humanos, fazendo com que suas apresentações ultrapassem uma moldura musical dedicada ao inofensivo entretenimento da massa. "Acho surpreendente que alguém possa ter ouvido minhas músicas por 50 anos sem entender [meu posicionamento]", respondeu. Inclusive, o baixista dá uma alternativa aos fãs que não concordam com seu ponto de vista: "Vejam o show da Katy Perry (...) Eu não me importo".  Desse modo, uma das pertinentes flamas ideológicas da turnê Us + Them é o alerta contra a permanente ameaça do fascismo em diferentes partes do mundo. Um exemplo dessa ação no escopo do evento está simbolizada nas duras críticas ao governo de Donald Trump. 

Foto: Fábio Codebilla
Aqui no Brasil, Roger Waters colocou no telão frontal do palco, o nome do até então candidato, e hoje presidente eleito do Brasil, Jair Bolsonaro, numa lista de fascistas mundiais. Assim, dividiu opiniões. Além do mais, exibiu a hastag #elenão, um dos principais emblemas oposicionistas ao candidato do PSL. Ganhou mais vaias do que aplausos. Em Salvador, homenageou Mestre Moa do Katendê, morto numa discussão política; no Rio de Janeiro, recebeu no palco a filha, a irmã e a viúva de Marielle Franco, vereadora carioca assassinada em março desse ano. E, também, manteve seu posicionamento em entrevistas a importantes veículos de comunicação do país.

Foto: Fábio Codevilla
Num encontro registrado em vídeo, debateu com Caetano Veloso e categoricamente reafirmou seu temor pela escolha do novo governante do maior país da América Latina: "Tudo o que posso dizer [aos eleitores de Bolsonaro] é que eles deveriam se lembrar de 1933. Eu tenho certeza de que pessoas boas também votaram em Adolf Hitler. E foram eleições democráticas. E quando Hitler chegou ao poder, os alemães assistiram ao incêndio do Reichstag e de repente tudo mudou. (...) Só havia os uniformes marrons e vingança!", alertou na entrevista ao Canal Mídia Ninja.   

Foto: Fábio Codevilla
Em Curitiba, um dia antes do segundo turno das eleições, a Justiça Eleitoral do Paraná mandou advertir a produção do evento sobre as restrições eleitorais que passariam a valer a partir das 22h, exatamente 1h após o início da apresentação no Estádio Couto Pereira. O que aconteceu? 21h59min, uma mensagem surge no telão: "Temos 30 segundos. É nossa última chance de resistirmos ao fascismo antes de domingo. Ele não! São 10h, obedeçam a lei". Nada como a irreverência inglesa. De todo o modo, Bolsonaro foi eleito, e o show em Porto Alegre passou a ganhar todas as atenções por ser o último show do tour em terras brasileiras, e o único fora do pleito eleitoral. Restava saber como seria o comportamento do músico. 

NÓS E ROGER WATERS / O SHOW EM PORTO ALEGRE - A apresentação em Porto Alegre começa pontualmente às 21h, e acabaria 2h25 depois, sendo a mais curta das oito que Waters fez no país. Tudo é impressionante na estrutura do evento. Para começar, um palco de 750m²; porcos voadores; réplicas das chaminés da termoelétrica de Battersea, em Londres; projeções que usam tecnologia de ponta; 17 projetores de 30K; cinco projetores de 7K para as monstruosas chaminés e uma imensa tela de LED de 6k alimentada por 6 feeds; o mair telão frontal HD que você já viu na vida com resolução de 32 Mpixels, ou seja - uma parafernália tecnológica que deixa o público de queixo caído, além de potencializar todas as sensações de estar frente a um dos repertórios mais celebrados do rock em todos os tempos. Só para o porco voador, 48 câmeras e 12 Copernics seguem e iluminam um dos momentos mais esperados do evento. O animal inflável sobrevoa a plateia utilizando a tecnologia de um drone, materializando assim uma recriação da capa de "Animals" (1977). 

Logo nos segundo iniciais, com a introdução de "Speak to me", temos a certeza de que avançamos a passos largos rumo ao território floydiano: - som de relógios e máquina registradora; retalhos de falas e risadas; batidas de coração simuladas por um loop do bumbo de Nick Mason - efeitos sonoros com pontos de áudio espalhados por todo estádio, experiência quadrafônica que antecipa "Breath", sequência de abertura de "Dark side of the moon" (1973). Por mais que todos os olhos se voltem para o protagonista, não há como não mencionar os acompanhantes de Roger Waters. No grupo base, o velho colaborador Jon Carin (piano, teclados, programações, guitarra e vocais); David Kilminster - guitarra e baixo; Gus Seyffert - guitarra, baixo e vocais; Jonathan Wilson - guitarra, baixo e vocais; Bo Koster - piano e teclados;   Ian Ritchie - saxofone; Joey Waronker - bateria; além de Jess Wolfe e Doris Laessig (vocais de apoio e percussão). 

Foto: Fábio Codevilla
A massa sonora empurrada por esse super-time emula o espírito de um Pink Floyd na ponta dos cascos. É o que vemos em "Time", antecipada pelos badalos, despertadores e o compassado tiquetaquear de um relógio, DNA típico do quarteto Waters/Gilmour/Wright/Mason. Se você leu em algum lugar manchetes do tipo "Roger Waters mergulha em política e se esconde em banda cover de Pink Floyd", não se engane. É muito mais do que isso. Além de todo o aparato tecnológico, o que realmente importa é o somatório da proficiência técnica, com um dos melhores shows da atualidade no rock, um repertório emocionante e a sensação de que um DVD está sendo filmado ao vivo frente aos nossos olhos incrédulos.

Foto: Fábio Codevilla
A versão de "The Great Gig in the Sky", um dueto entre as vocalistas de apoio da banda, traz novo sopro a versão original de Clare Torry. As canções do novo álbum solo, "Is this the life we really want?" dialogam perfeitamente com o vernáculo emocional de seus clássicos. Temas como "Déjà Vu", "The Last Refugee", "Picture That" e "Smell the Roses" se entrelaçam esteticamente aos standards do Pink.       

Conforme o cronograma habitual da turnê Us + Them, as principais manifestações políticas se detiveram as menções a Donald Trump e pedidos por resistência e ativismo. Num dos importantes momentos da noite, em "Another Brick in the Wall, Part 2", doze crianças do projeto Ouviravida (Porto Alegre), encapuzadas sobem ao palco com macacões laranjas, e durante o refrão da música, retiram o capuz para logo depois exibirem camisetas pretas com a palavra "Resist". Não houve menções diretas/indiretas a Bolsonaro, nem mesmo a hashtag #elenão surgiu no telão, dessa vez Waters resolveu diluir sua linha de protesto dentro do caldeirão geral. Para bom entendedor... Uma curiosidade: na capital gaúcha, Jair Bolsonaro teve 56,85% dos votos válidos, contra 43,15% de Fernando Haddad, mesmo assim, entre os 44 mil espectadores presentes, foram os gritos de "ele não" que soaram mais fortes no Beira-Rio.

Foto: Fábio Codevilla
Durante o intervalo de 15 minutos, o telão nos mantém conectados ao palco através de mensagens de alerta a violações de direitos humanos. De súbito, a usina termelétrica de Battersea surge imponente com chaminés fumegantes, ao mesmo tempo em que uma chuva fina traça riscos em frente as luzes do palco. Trata-se do momento mais político da noite, com "Dogs" e "Pigs", explícitas missivas endereçadas a Trump. Enquanto isso, o porco voador com as palavras 'Stay Human/Seja Humano' sobrevoa a pista em frente ao palco, imagens que nos levam de volta ao álbum "Animals" (1977). "Money" e "Us and Them" revelam o talento de Jonathan Wilson, que além de reprisar várias das guitarras de David Gilmour, também é o responsável por incorporar a digital de sua interpretação. Os dois temas ainda contam com o saxofone de Ian Ritchie.

Chegando a ponta de baixo do set, o show chega aos seus instantes finais com o epílogo de "Dark side of the moon", o medley "Brain Damage/Eclipe". A chuva se intensifica, a equipe do tour cobre os equipamentos e arma pequenos toldos para proteger os músicos. Desse modo, a chuva encurta a apresentação. Roger anuncia que por cautela, algumas músicas precisam sair do o set. Assim, deixamos de ouvir "Mother" (ou "Two suns in the sunset"). "Confortably Numb", um dos temas símbolo de "The Wall" é o ato conclusivo da apresentação. "De coração, obrigado! Cuidem uns dos outros. And good night". 

Durante "Money", talvez muitos não tenham percebido, o telão exibiu a frase: "Vocês não venceram, no seu mundo nunca há vencedores, só perdedores, e todos perdemos", uma mensagem que talvez tenha passado rápido demais para maus entendedores. Saio do Beira-Rio com a sensação de anticlímax. Um temporal despenca pelas ruas da capital. Tomo um depurativo banho de chuva a caminho do ônibus de excursão que me levará de volta para Santa Maria. Literalmente, de alma lavada com o Outubro Vermelho, pois temos a consciência tranquila de que fizemos nossa parte. E Roger estava do nosso lado. Fica a certeza de que toda luta é válida, que a derrota sempre nos ensina a ficarmos ainda mais fortes, que há convicção quando estamos alinhados a valores que nunca nos envergonharão.   

A turnê conclui sua perna sul-americana no Uruguai (3), Argentina (6 e 9), Chile (14), Peru (17) e Colômbia (21). O último show em 2018 está agendado para o dia 8 de dezembro, em Monterrey, no México. Ainda sobre o show de Roger Waters em Porto Alegre, nossos agradecimentos a Jéssica Barcellos e Cátia Tedesco (Agência Cigana) pelo suporte e credenciamento.       



Set 1:

Speak to Me
Breathe
One of These Days
Time
Breathe (Reprise)
The Great Gig in the Sky
Welcome to the Machine
Déjà Vu
The Last Refugee
Picture That
Wish You Were Here
The Happiest Days of Our Lives
Another Brick in the Wall Part 2
Another Brick in the Wall Part 3

Set 2:

Dogs
Pigs (Three Different Ones)
Money
Us and Them
Smell the Roses
Brain Damage
Eclipse
Comfortably Numb


Veja mais fotos de Fábio Codevilla.

Foto: Fábio Codevilla

Foto: Fábio Codevilla

Foto: Fábio Codevilla

Foto: Fábio Codevilla

Foto: Fábio Codevilla

Foto: Fábio Codevilla

segunda-feira, 26 de março de 2012

ROGER WATERS - PORTO ALEGRE, 25 DE MARÇO DE 2012

Fotos: Lauro Alves
Por Márcio Grings Fotos Lauro Alves

Poucas vezes me senti tão assombrado frente ao espectro de um espetáculo. E não falo apenas do conteúdo intelectual do evento, mas num sentido mais amplo. Se pudéssemos colocar “The Wall Live” em uma cápsula do tempo, e supostamente remontá-lo daqui a 40 ou 50 anos, possivelmente ainda teríamos um ótimo resumo (da ópera) de como o rock and roll pôde alcançar o status de arte. Não que o gênero nunca tivesse encontrado esse enlace, claro que sim, várias vezes, inclusive. No entanto, a obsessão de Waters em revisitar uma de suas obras-primas tornou essa obstinação ainda mais peculiar.

Confira "In The Flesh?", recorte extraído do filme "The Wall Live" (vídeo incluído em 2017).  



À primeira vista, o novo show de Roger Waters parece ser apenas uma experiência tecnológica. Mas não é.  Em primeiro lugar, trata-se de uma imersão emocional. Afetiva. No entanto, voltando ao mundo real a parafernália que move o circo de “The Wall Live” impressiona primeiramente pelos números.  O maior dos telões em forma de muro chega aos 137 metros de largura. E que som! No entanto, “The Wall Live” nos assombra principalmente pela força de uma obra que teima em permanecer arejada e relevante, mesmo passadas mais de três décadas de sua concepção. E do alto de seus 69 anos, Roger Waters continua impregnado pelo palco e pela emoção de se comunicar com as multidões.

Foto: Lauro Alves
Parece que o ex-Pink Floyd consegue turbinar tudo aquilo que há de mais positivo em sua obra-prima confessional/pessoal, mas que, no entanto, soa extremamente familiar como temática que aborda diversos dilemas da vida moderna. O “Porco Voador” que sobrevoou a plateia com os dizeres “R$2,85 é roubo!“ (referindo-se ao valor da passagem de ônibus na Capital) mostra que Waters ainda usa a música como ferramenta política, e mais: ele dá voz ao público. Entre os homenageados da noite, Jean Charles de Menezes, brasileiro morto pela polícia inglesa em 2005. Não bastasse a menção, os pais de Jean Charles foram convidados a assistir a primeira apresentação do tour no país.

Foto: Lauro Alves
À frente de uma equipe de mais de 80 pessoas, o músico inglês que fez história como líder de uma das bandas mais amadas da história do rock, levou centenas de pessoas às lágrimas em canções como “Mother” e “Confortably Numb”. “The Wall Live” pode soar superlativo e pirofágico, como na abertura em “In The Flesh”, mas também pode nos colocar numa sala de estar a emular um cena teatral, como em “Nobody Home“. Os desenhos e a concepção artística de Gerard Scarfe, amplamente conhecidas em imagens icônicas na capa e no encarte do LP original e nas animações no filme de Alan Parker, também estão no espetáculo. Assim como os bonecos do professor, da mãe excessivamente protetora e da mulher demônio.

Foto: Lauro Alves
A banda de Waters tem nomes de peso como os guitarristas Snowy White, G.E. Smith e Dave Kilmister, além de um timaço de músicos e vocalistas que emprestam cores diversas ao concerto. Como não se emocionar com a versão mais intimista de “The Show Must Go On”, os diversos recortes de imagens e tonalidades que nos deixam boquiabertos, e com as projeções espetaculares no telão circular e nas paredes do muro. Mesmo muro que sepulta a banda da visibilidade do público, para logo depois desabar sob os olhos incrédulos de uma mesma audiência catártica. Na despedida de Roger Waters e os seus, vemos o grupo de músicos abandonando a espaçonave e atuando como um bando de saltimbancos. Um a um, mediante apresentação do capitão da nave, eles vão deixando o palco como se fossem passageiros de um ônibus estelar. 

Fotos: Lauro Alves
Saí de lá como uma certeza: Nunca mais veremos algo parecido. “The Wall Live” é o “Maior Espetáculo da Terra”. Mesmo que esse título já tenha sido usado centenas de vezes. Difícil voltar à vida normal depois dessa noite. Difícil...


Veja o trailer de "The Wall Live", que virou documentário (vídeo adicionado em 2017).

  


Confira o setlist da apresentação.

“In the Flesh?”
“The Thin Ice”
“Another Brick in the Wall Part 1″
“The Happiest Days of Our Lives”
“Another Brick in the Wall Part 2″
“Mother”
“Goodbye Blue Sky”
“Empty Spaces”
“Young Lust”
“One of My Turns”
“Don’t Leave Me Now”
“Another Brick in the Wall Part 3″
“Goodbye Cruel World”
Intervalo
“Hey You”
“Is There Anybody Out There?”
“Nobody Home”
“Vera”
“Bring the Boys Back Home”
“Comfortably Numb”
“The Show Must Go On”
“In the Flesh”
“Run Like Hell”
“Waiting for the Worms”
“Stop”
“The Trial”
“Outside the Wall”

ÚLTIMA COBERTURA:

THE PRETENDERS - PORTO ALEGRE, 18 DE MAIO DE 2025

| Foto Laura Aldana | | Por Márcio Grings Fotos Laura Aldana | Final de domingo, uma chuva fina cai sobre Porto Alegre. A pé, cruzo a Aven...