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sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024

OMAR COLEMAN — PORTO ALEGRE, 22 DE FEVEREIRO DE 2024

Foto: Zé Carlos de Andrade
| Por Márcio Grings Fotos: Zé Carlos de Andrade |

Cidade mais populosa do estado de Illinois, nos Estados Unidos, Chicago é também uma das mecas do blues, jazz e da música negra norte-americana. Quando o blues tomou conta das ruas da cidade em meados do Século XX,  em busca de um cenário repleto de oportunidades artísticas, músicos locais encorajaram os imigrantes sulistas a trocar o violão por guitarras elétricas. Completando o caldo, as letras das canções começaram a refletir a vida dos afro-americanos durante aquele período, transformando essa cultura em patrimônio internacional da negritude. Assim o blues sofreria uma de suas grandes transformações, forjando dezenas de instrumentistas, cantores e compositores, entre eles nomes como Muddy Waters, chamado de "Pai do Chicago blues". Tudo isso influenciaria a chamada Invasão Britânica no início dos anos 1960, mas essa já é outra história...

Foto: Zé Carlos de Andrade
Ao raiar do século XXI, as regras do jogo mudaram, a própria música negra se redefiniu, contudo Chicago continua sendo reconhecida além do epíteto de berço do blues e do jazz, pois ressignificou essa ligação primordial, estendendo seus laços com o funk e o soul (até mesmo o RAP), algumas das vertentes exploradas na música de Omar Coleman. Nascido nesse 'berço de ouro', contudo o cantor e gaitista de 51 anos amplia territórios, pois se conecta na mesma prateleira de artistas do blues/ soul revival como Charles Bradley, Sharon Jones & The Dap-Kings e Gary Clark Jr. De todo o modo, esqueça qualquer comparação — basta ele emitir uma frase no microfone e fica fácil perceber sua qualidade. 

Foto: Zé Carlos de Andrade
O músico norte-americano se apresentou nesta quinta-feira (22) no Sgt. Pepper's, em Porto Alegre, sua segunda vez na capital gaúcha, em mais uma promoção do Clube do Blues. Na banda base que acompanhou, nomes conhecidos do blues nacional: Igor Prado (guitarra), Luciano Leães (teclados), Edu Meirelles (baixo) e Ronie Martinez (baixo), quarteto que começa o show em alta rotação — ainda sem a atração principal — ao som de “Something You Got”, uma tema de Chris Kenner, cantor e compositor de R&B baseado em Nova Orleans (que morreu em 1976, com apenas 46 anos), e uma daquelas canções que já ouvimos em dezenas de versões, mas que sempre cai muito bem como abre-alas para uma apresentação desse calibre. Lembre-se, temos um embaixador da música de New Orleans em Porto Alegre, ele se chama Luciano Leães (o pianista gravará dois álbuns por lá em 2024), portanto, o show começa nesse encontro entre Chicago e NOLA. Outro detalhe significativo: essa formação já se reuniu diversas vezes ao longo dos anos, sempre dando suporte para vários nomes da música norte-americana que passaram pelo Brasil: Willie Walker, Whitney Shay, Cerissa McQueen, entre outros, uma garantia com selo de qualidade, além da certeza de ouvirmos improsivos e um sabor diferente em cada palco por onde passam.  

Foto: Zé Carlos de Andrade
Virando a página logo no início, Omar Coleman começa os trabalhos com uma das faixas que o definem, “Born and Raised”, música que batiza seu álbum  de 2015, lançado pelo tradicional selo Delmark. Se estivéssemos apenas vendo um foto de Coleman (coloque o botão play no mute), vestido todo de preto, óculos escuros e com um boné do Chicago Bulls, é mais provável que qualquer desavisado o relacionasse com um artista do hip-hop, pois, seja pelo despojamento ou postura no palco, o cantor e instrumentista se distancia dos padrões pré-estabelecidos do blues, o que declaro como outra de suas virtudes. Omar tem o mesmo timbre de voz dos grandes nomes do gênero, assim como a harmônica entre seus lábios materializa mais a simplicidade do que o virtuosismo, soando muitas vezes como um naipe de sopros com carimbo soul. Quando toca a gaita de boca, a harmonia parece ser mais importante do que os solos, algo que definitivamente me conquista num instrumentista. Às vezes preferem tocar a panderola e deixar a harmônica no bolso, balançando ao ritmo da música e batendo o instrumento contra seu corpo. 

Foto: Zé Carlos de Andrade
No repertório, mesclas de clássicos do soul sempre presentes na boca do povo — “Let’s Stay Together” e “Take Me to the River” (Al Green); “Stand By Me” (Ben. E. King); “My Girl” (Smokey Robinson) e “Hey Pocky A-Way” (The Metters), essa com participação do saxofonista Ronaldo Pereira). Em “Mustang Sally” (Mack Rice), os mais atentos perceberam uma breve citação no riff da guitarra de Igor Prado a "Smell Like a Teen Spirit", o que revela o espírito de mistura e diversão envolvido entre os músicos. No comando das operações, Maestro Omar muitas vezes dita os breaks e estende os finais das versões, regendo os instrumentistas e determinando quando quer ouvir os solos de Igor Prado ou de Luciano Leães, uma promessa de ineditismos em cada releitura.  

Foto: Zé Carlos de Andrade
O blues também deu o ar da graça na sua releitura de “Chicken Heads” (Bobby Rush) e numa das canções símbolo do gênero em todo mundo, “Sweet Home Chicago” (Robert Johnson), um tema que não necessariamente fala sobre o destino, mas principalmente sobre a jornada. E quando pensamos na jornada que nos trouxe ao atual status da música mundial, ainda é incrível pensar que, mesmo com a grande mídia disponibilizando cada vez menos espaço para o blues, o funk (americano) e o soul, às vezes temos o privilégio de assistir artistas desse calibre ao vivo e tão de perto. Assim, a cada novo encontro no Sgt. Pepper's, revitalizamos uma sensação de contentamento e conforto, como se sempre estivéssemos em casa no Clube do Blues, como de fato estamos. 

Foto: Zé Carlos de Andrade

Foto: Zé Carlos de Andrade

Foto: Zé Carlos de Andrade


terça-feira, 5 de dezembro de 2023

Paul McCartney — Belo Horizonte, 3 de dezembro de 2023

| Foto: Marcos Hermes |
| Por Romero Carvalho Fotos: Marcos Hermes |


“It’s long way to the finish when you've never been before” 

Queenie eye, do álbum “New”, de 2013.  

Nesta altura dos acontecimentos, vou presumir que todos que chegaram neste texto saibam o quão imenso é o GÊNIO Paul McCartney. E espero que, com essa abertura, pressuponham a minha relação intensa e amorosa com toda a sua obra. Muito do que sou se deve às suas canções, nestes brilhantes 60 anos de carreira. Num mundo de injustiças, algo se faz justo: o mais bem-sucedido artista pop de todos os tempos merece sê-lo. 

Há incontáveis formas de comentar o show de Paul — e ninguém ousa chamá-lo formal e friamente de McCartney —, na estonteante Arena MRV neste domingo, dia 3 de dezembro. Poderia, com conforto, falar da emoção de ver novamente, talvez pela última vez, o artista que canta a trilha sonora da minha vida desde sempre, aos 81 anos, esbanjando vitalidade e carisma, com um repertório impecável, banda perfeita — a que mais tempo toca com ele, inclusive — e um estádio lotado. A propósito, que bom ver um naipe de metais no palco com o Paul! Também é sempre possível ressaltar a dificuldade que envolve shows imensos: chegar cedo demais, esperar demais — com um raríssimo atraso mccartneiano pra começar o show — trânsito terrível ou, bem pior, a cada vez mais constante falta de educação e noção de parte do público, que parece não ter grande interesse em música, mas apenas em estar num macro evento, independente de quem seja. O espetáculo musical pouco importa, pois mais vale instagramar o momento e conversar alto o tempo todo. Dá vontade de perguntar se o show está incomodando. Isso, infelizmente, é cada vez mais comum. Muito diferente dos públicos dos shows que fui do Paul em 2010, em São Paulo, e 2013, em Belo Horizonte. 

| Foto: Marcos Hermes |

Mas preciso muito tentar relatar esta, que, repito, pode ser a nossa despedida do Macca no Brasil, pelos olhos de uma criança de oito anos e outra de seis. Como Paul é o artista da família, fomos à Arena com a escalação completa: esposa, que anualmente escuta toda a discografia do Paul em sequência, eu e os três filhos, sendo que Nandi e Lalita, oito e seis anos, iriam pela primeira vez. Todos “uniformizados”. Inicialmente, não tinha conseguido comprar os ingressos deles, mas a frustração era tanta que os avós cederam suas entradas. “Já vimos o Paul na última vez. Eles precisam dessa experiência”. E isso diz muito: ver o Paul não é ir a um show apenas. É uma catarse, um ritual de agradecimento coletivo, celebração da música pop de excelência, do legado do maior fenômeno popular do século XX, que atravessa e une gerações, do compositor que não descansa e não desiste de nos dar a sua presença ao vivo. Por três horas. Com 81 anos. Sem muito mudar o tom ou andamento das músicas. 

Nandi e Lalita estavam realmente muito empolgados e são filhos de pais realmente dedicados à obra do inglês. Lalita queria “Jet” e “Nineteen hundred eighty five”, clássicos do “Band on The Run” (1973), o álbum hit da casa. Wings é sua banda favorita. Nandi queria todas, especialmente “Hey Jude”, sua canção de estimação. Levá-los implica, logicamente, um esforço muito maior, com uma logística bem feita e muita paciência. Lalita sucumbiu ao atraso e acabou chegando ao show já muito cansada. Dormiu uma grande parte do espetáculo, mas acordou a tempo de ver o ‘medley dos medleys’, “Golden Slumbers/Carry that weight/The End” e pedir depois pra colocar em sua lista no Spotify. Ao final, comentou que queria que o Paul morasse em Belo Horizonte e fizesse show toda hora. Ela iria a todos. “Eu vi o Paul e ele me viu”. 

Nandi, por sua vez, explodiu de alegria, dançando alucinadamente o tempo todo. Em suas favoritas, sobretudo dos Wings, fazia questão de exaltar a sua felicidade de vê-las ao vivo. Quando veio “Hey Jude”, ele tratou o “na na na” com solenidade e reverência. Em seu olhar para o palco, vi o fascínio que a música desse senhor ainda desperta. A magia de suas melodias, de seu magnetismo, de sua simpatia ao, mesmo sem precisar, se esforçar para se comunicar com a plateia em português. É a lenda das lendas, o mestre dos mestres ali, a metros de distância, cantando, tocando com absurda competência baixo, guitarra, violão, mandolim e pianos. Nandi entendeu tudo isso e se expressou à sua maneira. “Hoje foi o melhor dia de todos”, disse ao final. E isso vale qualquer esforço de um show grande. Isso retribui todo o investimento em tratar a música como a divindade que ela é, capaz de conectar as pessoas, celebrar a vida, auxiliar na contemplação e meditação, ressignificar, sublimar sentimentos... Algo para se levar a sério. Música forja amizades (e as melhores) e abre um universo para cada ouvinte atento. “Take a sad song and make it better”.  

Mais uma vez: é possível que esta seja a primeira e última vez deles com o Paul. E eu não conseguiria falar do legado deste homem de uma maneira mais didática. Não há nada como isso. Foi lindo e lúdico ver o show pelo olhar deles. E se esta foi a última vez, “in the end the love you take is equal to the love you make”, Paul. 

Afinal, o tempo vale pro Macca? Porque nunca vai haver um mundo sem Paul McCartney. Ao menos um que valha a pena. 

"At the end of the end/ It's the start of a journey/ To a much better place/ And this wasn't bad/ So a much better place/ Would have to be special/ No need to be sad.

On the day that I die/ I'd like jokes to be told/ And stories of old/ To be rolled out like carpets/ That children have played on/ And laid on while listening/ To stories of old.

At the end of the end/ It's the start of a journey/ To a much better place/ And a much better place/ Would have to be special/ No reason to cry/ On the day that I die/ I'd like bells to be rung/ And songs that were sung/ To be hung out like blankets/ That lovers have played on/ And laid on while listening/ To songs that were sung.

At the end of the end/ It's the start of a journey/ To a much better place/ And a much better place/ Would have to be special/ No reason to cry/  No need to be sad/ At the end of the end"

— Letra epitáfio de “The end of the end”, do álbum “Memory Almost Full”, de 2007. Paul parecia não saber, mas havia ainda muita gasolina no tanque!    

Setlist Paul McCartney | Arena RMV, Belo Horizonte — 3/12/23

Can't Buy Me Love

Junior's Farm

Letting Go

She's a Woman

Got to Get You Into My Life

Come On to Me

Let Me Roll It / Foxy Lady

Getting Better

Let 'Em In

My Valentine

Nineteen Hundred and Eighty-Five

Maybe I'm Amazed

I've Just Seen a Face

In Spite of All the Danger

Love Me Do

Dance Tonight

Blackbird

Here Today

New

Lady Madonna

Fuh You

You Never Give Me Your Money

She Came in Through the Bathroom Window

Jet

Being for the Benefit of Mr. Kite!

Something

Ob-La-Di, Ob-La-Da

Band on the Run

Get Back

Let It Be

Live and Let Die

Hey Jude


Bis

I've Got a Feeling

Birthday

Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band (Reprise)

Helter Skelter

Golden Slumbers

Carry That Weight

The End

| Foto: Marcos Hermes |


segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

SEUN KUTI & EGYPT 80 – PORTO ALEGRE, 1° DE DEZEMBRO DE 2023

| Foto: Rafael Cony |
| Por Lúcio Brancato Fotos: Rafael Cony |

Assim como tem shows onde o som bate no peito e percorre cada célula do nosso corpo, existem outros que transcendem o físico e nos colocam em hipnose multissensorial. Quando temos essas duas possibilidades num mesmo espetáculo, podemos afirmar ter vivido uma experiência musical completa.

O show de Seun Kuti & Egypt 80, no Bar Opinião, em Porto Alegre, fez exatamente isso: trouxe uma força de ancestralidade musical mágica e contemplativa, onde sentimos o magnetismo terrestre e a flutuação sideral num mesmo espaço de tempo. Neste caso, nenhum exagero substituirmos a palavra show por ritual, pois o que assistimos na noite de sexta-feira foi um culto.

| Foto: Rafael Cony |
Filho mais novo do nigeriano Fela Kuti (1938/1997), Seun carrega e expande o legado cultural, musical e político do pai. Apresenta na sua forma mais legítima o que ficou conhecido Afrobeat, um crossover de temperos ocidentais do jazz, funk, rock e soul, com elementos da música tradicional africana, como o percussivo do Iorubá e os sopros do Highlife. É uma música cíclica, de longo tempo de duração, onde a intensa repetição de melodias pode ser comparada aos mantras orientais. Uma sensação sonora circular e elástica que vai se expandindo harmonicamente entre metais, tambores, guitarra, baixo e cânticos. Acrescente a tudo isso o próprio corpo como instrumento. Cada movimento no palco coreografa de forma visual o entendimento universal do que está sendo dito. Aqui nem sempre é necessário um idioma para conectar palco e plateia, a expressão corporal traduz qualquer linguagem. É toda essa soma de forças que a gente sente durante o ritual.

| Foto: Rafael Cony |

Quando Fela Kuti morreu em 1997, aos 58 anos, Seun com apenas 14 anos assume, a pedido do próprio, a liderança da banda Egypt 80. De lá pra cá, não só preserva a força da música, como também assegura a continuidade do ativismo social e político tão importante e necessário implementado pelo pai. Fela lutou e denunciou com sua arte toda opressão do povo da Nigéria, que passou por sangrentas batalhas e governos ditatoriais. Apontou o dedo para o ocidente contra toda exploração humana e tantas tentativas coloniais de apagar a cultura continental africana.

| Foto: Rafael Cony |

O recado é dado já no começo da apresentação. A Egypt 80 surge no palco – melhor, no altar – trazendo na formação um naipe de metais com trompete, sax tenor e barítono, bateria, guitarra, duas vocalistas e também dançarinas, e no baixo Kunle Justice, membro remanescente da formação original da banda. Com um tema instrumental aquecem a entrada de Seun Kuti, que chega ao rito para somar com sua voz, seu sax alto e teclados, um dos hinos mais fortes e marcantes compostos por Fela: Coffin for Head of State. Um épico que passa dos 20min, gravado em resposta ao feroz ataque policial de 1977 que literalmente destruiu a República Kalacuta – espécie de comunidade alternativa criada por ele em Lagos – onde morava com a família, membros da banda e onde também ficava seu estúdio e acervo. Tudo destruído e incendiado, pessoas espancadas, presas e a sua mãe arremessada de uma janela do segundo andar. Funmilayo Ransome-Kuti morreu em abril de 1978 por complicações deste ato. A capa do disco com mesmo nome, lançado em 1981, traz imagens de quando Fela Kuti deixou caixão na frente do quartel general de Lagos protestando e apontando mais uma vez os culpados de um terror inimaginável.

| Foto: Rafael Cony |
É toda essa carga que o herdeiro Kuti carrega e preserva durante as duas horas de culto. Em determinado momento comenta que quando viaja pelo mundo sempre perguntam em cada país se fala a língua local: inglês, alemão, português, espanhol, etc... Sua resposta? “Basta uma língua colonizadora que já tive que aprender.” Assim como o pai é ele quem rege cada nuance e variação de toda a banda. Como um líder nato – ou um chief – conduz com o corpo a intensidade e elasticidade de todo o conjunto. A pontuação do naipe de sopros é de uma indescritível pulsação que altera nosso próprio compasso, a hipnótica linha melódica da guitarra nos coloca no meio de um cilindro e a dinâmica batida dos tambores balança qualquer espectador que se achava sem nenhum ritmo. 

| Foto: Rafael Cony |
Não importa a sua crença, fé, gosto musical ou escolha política. O que temos aqui é uma chance única de conexão com uma ancestralidade cultural e a mais verdadeira e coerente manifestação política, social e musical que você pode ter contato. Seun Kuti & Egypt 80 reconectam o ser humano com sua essência livre, sensorial e contemplativa. 
| Foto: Rafael Cony |

| Foto: Rafael Cony |

| Foto: Rafael Cony |

| Foto: Rafael Cony |

| Foto: Rafael Cony |

FITO PAEZ — ROSARIO (ARG), 02 DE DEZEMBRO DE 2023


Foto: Maximiliano Conforti
Foto: Maximiliano Conforti

Fito Paez desembarcou em Rosario (ARG) na noite de sábado (2), com a #EADDA9223, turnê que comemora os 30 anos de lançamento do disco "El Amor Después del Amor" (1992) — o mais vendido da história do rock argentino. Após 60 shows, a tour chega ao fim nos dias 15 e 16 de dezembro, em La Plata (ARG). Porém, antes de passar a régua, o músico não poderia deixar de visitar Rosario. E tocar na cidade é estar em casa. 

Foto: Maximiliano Conforti
Foto: Maximiliano Conforti
Por isso, fui com a mais alta das expectativas e consegui realizar um sonho: assistir Fito Paez pela enésima vez, a primeira em sua cidade natal. Após uma viagem meio planejada, meio na raça, não faltou emoção. Estar 'no quintal' do rosarino, diante de sua gente e seu público fiel, me parecia algo surreal. E foi.

Foto: Maximiliano Conforti
Foto: Maximiliano Conforti

O concerto começou com 30 minutos de atraso, no Ex Rural, espaço aberto no imenso Parque Independência. Inacreditavelmente o público pareceu compreender a ausência do artista no palco. Tirando palmas esparsas, a plateia não demonstrou desconforto com a demora. Eis que, às 21h30 o músico sobe ao palco acompanhado por uma super banda com sopros e percussão.

Foto: Maximiliano Conforti
Foto: Maximiliano Conforti

A entrega de Fito foi emocionante, mesmo que aparentemente o show seja previsível, pois reprisa o tracklist na exata ordem do álbum, mas traz algumas surpresas. Por exemplo, pouco antes da metade do espetáculo, a banda intercala um medley com músicas do álbum "Tercer Mundo", seguindo com as clássicas de "El Amor Después Del Amor".  

Foto: Maximiliano Conforti
Foto: Maximiliano Conforti
Bastante à vontade, como um filho pródigo que retorna ao seu quintal, Fito Paez conversa bastante, conta histórias e continuamente agradece ao público. A parte mais emocionante, sem dúvidas, foi a interpretação de "Al Lado del Camino", do disco Abre (1999). O tema surge numa versão mais lenta, reflexiva, forjando uma conexão incrível com o público. A música é autobiográfica e traz lembranças de passagens doloridas na vida do cantor (vale a pena ouvi-la e assistir à série "Amor y Musica", disponível na Netflix para entender). 

Foto: Maximiliano Conforti
Foto: Maximiliano Conforti
Em determinado momento, "Al Lado del Camino"é executada quase à capela, com breves notas ao piano, além do coro dos rosarinos. Aliás, a participação do público é assídua em quase todas as canções. 

Ao fim do show, Fito agradece a presença e a oportunidade de tocar em casa, diante dos seus. A função se repete nesta segunda-feira (4), às 21h, no mesmo Ex Rural, no Parque Independência, com ingressos esgotados. 

Foto: Maximiliano Conforti
Foto: Maximiliano Conforti

P.S.: Um fato que me chamou atenção foi a ausência de celulares no alto. Ao menos no setor onde eu estava (Campo, equivalente à Pista no Brasil). Os argentinos pareciam estar ali pela experiência, pelo artista e pelo show. Foi realmente uma surpresa bacana. #PeloFimDosCelularesNosShows


FITO PAEZ | EX ROSARIO, 2 de dezembro de 2023

El amor después del amor
Dos días en la vida
11 y 6
La Verónica
Tráfico por Katmandú
Pétalo de sal
Naturaleza sangre
Un vestido y un amor
Sólo los chicos / Nada más preciado / Gente sin swing / Tercer mundo / Yo te amé en Nicaragua
Ey, You!
Tumbas de la gloria
Nadie es de nadie / No bombardeen Buenos Aires
Al lado del camino
Circo Beat
Brillante sobre el mic
Ciudad de pobres corazones
A rodar mi vida

Bis:
Dar es dar
Mariposa tecknicolor
Y dale alegría a mi corazón

sexta-feira, 17 de novembro de 2023

RED HOT CHILI PEPPERS — PORTO ALEGRE, 16 DE NOVEMBRO DE 2023

| Fotos: Ton Müller |
| Por Márcio Grings Fotos: Ton Müller |

Antes de qualquer coisa, falando na primeira pessoa do singular, preciso dizer ao leitor: eu não sou fã do Red Hot Chili Peppers. A música do grupo norte-americano nunca orbitou na constelação musical ao qual faço parte como ouvinte. Claro, estou falando do meu toca-discos, da minha prateleira, daquilo que eu escolho ouvir nos meus domínios. Será? Todavia, é óbvio que como radialista — e ligado na programação das rádios — muitas vezes tive alguma canção do RHCP visitando meus dias, seja no trabalho ou como mero ouvinte. A exemplo disso, a década de 1990 foi um espaço de tempo em que Anthony Kiedis (voz), John Frusciante (guitarra e voz), Flea (baixo) e Chad Smith (bateria) tomaram de assalto o mundo e, canções como “Under the Bridge” e “Give It Away” de “Blood Sugar Sex Magik” (1991) foram incrustadas no nosso inconsciente. Entretanto, a banda não fixou sua âncora num marco temporal, ela seguiu adiante, sincrônica e relevante na música pop do nosso tempo. E, mesmo sem ser um devoto da música dos californianos, há um detalhe que me aproxima deles: minha esposa é fã do Red Hot Chili Peppers, com isso, durante as idas e vindas cotidianas, frequentemente seus discos rodam no CD player do carro. Tudo certo, sem levar em conta minhas preferências, trata-se de boa música.

Foto: Ton Müller

50 mil foram até a Arena do Grêmio para ver o último show da turnê brasileira, a segunda vez do grupo em Porto Alegre. Como o próprio nome da turnê nos sugere — a Global Stadium Tour — encontra nas multidões o seu púlpito e glória. Por outro lado, em vários momentos temos a sensação de que os músicos estão se apresentando num espaço reduzido, pois o palco (que é enorme, seguindo o protocolo dos shows em arenas) muitas vezes não é ocupado da forma que vemos em outros shows. E, na contramão do pop, o que poderia soar como anticlímax para os fãs radiofônicos ou quem sabe entediá-los pelos excessos e arroubos instrumentais, esse desenho roga uma das boas sacadas da montagem atual. Na redução dos espaços é proposto um show mais intimista — e, com isso, conseguimos enquadrá-los no telão e no nosso campo de visão centralizados em frente à bateria. Reconhecidos como virtuoses de seus instrumentos, é inegável perceber a interação olho no olho e o ambiente fértil para improvisos. Em dado momento, só o protocolar Anthony Kiedis parece ausente dessa festa, encontrando nas laterais do palco um respiro para as passagens instrumentais. Aos 61 anos, o vocalista está em ótima forma e vê-lo ao vivo amplia os adjetivos e confirma suas limitações em interagir com a plateia. Lembro que talvez seja pelo uso de uma bota ortopédica na perna esquerda. Talvez... 

Foto: Ton Müller
A cozinha do RHCP, que sempre esteve na gerência de Chad (62) e Flea (61) impressiona pelo entrosamento e zoação no palco, com luzes de sobra no baixista, um dos mestres no seu instrumento. Ao decorrer da noite, temas como “Can’t Stop” e “By the Way” são um convite para o ulular da massa, assim como “Scar Tissue” (vejo lágrimas em olhos próximos), “Snow (Hey Oh), “Soul to Squeeze”, “Strip My Mind” e “Californication” ganham o coro de milhares. Ouvir releituras infiltradas como “The Guns of Brixton”, do Clash, antes de “Eddie” ou “Havanna Afair", dos Ramones, até pode surpreender os desavisados, assim como ”What is Soul”, do Funkadelic, se transforma sem atalhos numa música do Red Hot. O setlist não é previsível, Lados B e surpresas podem aparecer. É o caso “Terrapine”, de Syd Barrett (Pink Floyd), na voz de John Frusciante, o que me arranca um breve sorriso. Hoje aos 53 anos, o guitarrista que voltou a ocupar seu posto em 2019, é um dos destaques do show, consequência de sua extensa paleta de cores como instrumentista, além da capacidade de produzir ótimas camadas vocais de apoio.

Foto: Ton Müller

Os fãs mais devotados festejaram a inclusão de "Me and My Friends" no show de Porto Alegre, apresentação que foi a mais longa e com mais músicas (21) da perna brasileira da Global Stadium Tour. Antes do bis, um dos públicos mais rumorosos deste ano na capital gaúcha em shows do gênero implora pela volta dos músicos ao palco. Eles retornam e se despedem com uma tríade de canções de “Blood Sugar Sex Magik” — o funk rock “Sir Psyco Sexy”, a divertida releitura de “They’re Red Hot”, de Robert Johnson, e o inevitável epílogo com “Give It Way” — afinal, toda a boa banda precisa de uma  "Satisfaction" como às na manga, e o RHCP a utiliza como cartada final —, o que obviamente nos joga na lembrança do videoclipe na MTV e da ascensão do grupo ao estrelato, lugar de onde merecidamente nunca mais saíram. 

De Porto Alegre, o Red Hot Chili Peppers parte para Santiago, no Chile, onde se apresenta na belíssima Movistar Arena.

Agradecimentos a Ton Müller (fotos) e Ana Bittencourt (minha consultora sobre o setlist do RHCP em Porto Alegre). 

Foto: Ton Müller

RHCP | Arena do Grêmio, 16 de novembro de 2023

Jam

Can’t Sop

Scar Tissue

Here Ever After

Snow ((Hey Oh))

Terrapin

Havana Affair

The Guns of Brixton\ EddieParallel Universe

Soul to Squeeze

Me & My Friends

Strip My Mind

Get Up and Jump\ Tippa My Tongue

Tell Me Baby

Californication

What Is Soul?

Black Summer

By the Way


Bis

Sir Psycho Sexy

They're Red Hot

Give It Away

Ao postar o setlist da apresentação, despedindo-se da série brasileira da turnê, dessa vez o grupo homenageou Rita Lee e Ieda Maria Vargas, a eterna Miss Universo gaúcha.

 



Foto: Ton Müller


Foto: Ton Mülle

quarta-feira, 8 de novembro de 2023

GLENN HUGHES — PORTO ALEGRE, 7 DE NOVEMBRO DE 2023

| Foto: Rafael Cony |
| Por Lúcio Brancato Fotos: Rafael Cony |

A passagem do tempo na história do rock tem sido um tanto questionável neste ano de 2023. Estamos diante de um turbilhão de emoções inimagináveis diante dos nossos olhos. Quando heróis octogenários como os Rolling Stones ressurgem entregando com tamanha energia e excelência um novo álbum, todo o resto do que conhecemos como Classic Rock parece rejuvenescer — Leia o review de "Hackney Diamonds" —. Nesse contexto, quando vemos um músico de 72 anos subindo no palco, o momento atual pode transformá-lo em um artista rejuvenescido. E foi com essa potência juvenil que o britânico Glenn Hughes presenteou o público de aproximadamente 1.200 fãs que compareceram no Bar Opinião, em Porto Alegre.

Leia o review da última passagem de Glenn Hughes por Porto Alegre (28/4/2018)

| Foto: Rafael Cony |
Independente do nível alto da régua etária imposto pelos Stones, podemos afirmar que Hughes parece congelado em um iceberg musical desde os anos 1970. Preserva o peso, o groove e a impressionante voz ao longo das décadas, como poucos contemporâneos da linha mais pesada do rock conseguiram manter. Traz ainda consigo uma evidente e espontânea alegria de compartilhar, com a plateia e com os músicos da banda, o mais puro e verdadeiro espetáculo de rock. 

A tempestade sonora vinda do palco de Glenn e seus fiéis marinheiros — Søren Andersen (guitarra), Ash Sheehan (bateria) e Bob Fridzema (teclados), é um convite para navegar para longe, rumo a novembro de 1973, quando foi gravado o álbum “Burn” celebrado nesta turnê que percorre o Brasil. Porém, para queimar tamanha energia do jovem Hughes não basta somente um disco, a trilogia sagrada de sua passagem pelo Deep Purple, traz ainda no repertório do show canções de “Stormbringer” (1974) e “Come Taste The Band” (1975), o que fez dessa noite uma festa de devoção. Observando as reações e os sorrisos estampados nos rostos do público, temos a garantia de ter presenciado um legado musical muito bem preservado e incontestável, diante de um dos protagonistas onde o tempo não parece existir.

| Foto: Rafael Cony |
Carismático, e nitidamente sentindo-se em casa, provou todo o carinho que tem com o público de Porto Alegre, onde tocou pela quarta vez. Pedindo desculpas, explicou que o show quase foi cancelado devido a uma forte virose que o derrubou nos últimos dias, mas firmou ter feito questão de tentar se apresentar mesmo sabendo não estar em totais condições (o evento seguinte em Curitiba, nesta quarta, 8, foi cancelado). No Opinião, Glenn entregou tudo. Em diversos momentos a audiência fez do bar um grande clube de karaokê deixando para os fãs a missão de levar as vozes. A resposta foi magnifica. No bis, com a voz por um fio, tirou do setlist “Higway Star” e finalizou tocando o clássico “Burn”, praticamente sem poder cantar, mas regendo com maestria a plateia enquanto a banda acompanhava o coro de vozes.

| Foto: Rafael Cony |
Some a tudo isso outro fator fundamental que sela nossa viagem no tempo numa noite de terça-feira —o local do show parece moldar com exatidão sensações vividas em casas de shows clássicas dos anos 1970. O Bar Opinião, que festeja seus 40 anos de existência, mantém tanto para os músicos como para os espectadores, uma proximidade e energia que pode facilmente remeter a clubes históricos como um Whisky A Go Go (Los Angeles) ou Marquee Club (Londres), isso faz toda a diferença. Aqui não fechamos os olhos para imaginarmos um deslocamento sensorial ao escutar e assistir grandes nomes da música. De olhos bem abertos estamos inseridos numa jornada mítica e musical presente, seja o passado que você quiser estar. Nesta noite, por exemplo, a máquina de nossas cabeças trabalhou com facilidade nosso deslocamento até outra década. Equilibrou em som e imagem um passeio fiel e autêntico pelos oceanos do comandante Glenn Hughes. Com seu baixo conduziu como um leme firme na tempestade, com sua voz vislumbrou terra a vista no horizonte do rock n’ roll. Em que ano estamos mesmo?! 

Agradecimento especial a Homero Pivotto Jr (Blaze Productions) pelo suporte e credenciamento. 

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Setlist Glenn Hughes performs Classic Deep Purple Live em Porto Alegre:

STORMBRINGER

MIGHT JUST TAKE YOUR LIFE

SAIL AWAY

Medley: YOU FOOL NO ONE/ HIGH BALL SHOOTER  

MISTREATED

GETTIN' TIGHTER

YOU KEEP ON MOVING

Bis

BURN

| Foto: Rafael Cony |

| Foto: Rafael Cony |

| Foto: Rafael Cony |

quinta-feira, 2 de novembro de 2023

ROGER WATERS — PORTO ALEGRE, 1° DE NOVEMBRO DE 2023

Crédito: Lucas Alvarenga/ Alva Filmes. Foto: Paulo Corrêa/ No Palco

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Por Márcio Grings e Lúcio Brancato |

Há muito tempo Roger Waters entrega músicas onde sua intenção é nos fazer pensar sobre a ordem das coisas. Como sabemos, a veia política está no cerne do Pink Floyd, seja de forma indireta, como em discos como "The Dark Side of The Moon" (1973) e "Wish You Where Here" (1975), ou, até mesmo explicitamente, o que está na íntegra de "Animals”  (1977), por exemplo. "The Wall" (1979) seguiu alternando temáticas sociais com dramas existenciais, além de regurgitar traumas da geração baby boomer. Já "The Final Cut" (1983) crava sua âncora temporal na Guerra Fria e num conflito bélico específico — a Guerra das Malvinas/Falklands. Em carreira solo, exceto no seu primeiro trabalho, "The Pros and Cons of Hitch Hiking" (1984), mais brando nas questões políticas — "Radio K.A.O.S" (1987), "Amused to Death" (1992) e "Is This the Life We Really Want?" (2017) são inquestionavelmente alavancados por causas político-sociais. Em suma, o que presenciamos no concerto “This is Not a Drill” é a montagem de uma quebra-cabeças de peças musicais muito bem escolhidas, afinal resumir a despedida dos palcos numa trajetória de tantas décadas entre discos do Pink Floyd e a carreira solo não é uma missão fácil. E aqui mais um mérito do artista, pois ele conseguiu trazer um excelente apanhado contemplando um pouco de tudo.

Ao longo dos anos, os shows de Roger Waters proporcionam para o público uma experiência sensorial completa. O jovem Lúcio, no auge do derretimento coletivo, aos 24 anos, era impactado por um espetáculo de som e luzes como nunca havia experimentado, isso na primeira passagem do baixista pela capital gaúcha, em 2002. Na mesma cidade, exatamente uma década depois, o já quarentão Márcio, aos 42 anos, assistiu boquiaberto a queda do muro como se fosse uma barreira real. E ainda hoje nos maravilhamos pela forma como o artista usa sistemas de áudio imersivos, o surround e outras tecnologias que amplificam todas as sensações possíveis na mente do espectador. Helicópteros, aviões, explosões, gritos de socorro e sintetizadores percorrem o estádio e o nosso corpo nos atingindo de todas as direções. O que vemos no palco integra a plateia fundindo luz, imagem e som, disparando mensagens certeiras onde tudo se complementa. 

Crédito: Lucas AlvarengaAlva Filmes. Foto: Paulo Corrêa/ No Palco

O que está sendo dito nas letras ganha reforços tecnológicos que atingem até quem ainda aparentemente esteja neutralizado frente a espetáculos desse porte. Se no mundo cruel de hoje e de ontem, a justiça muitas vezes não se apresenta, nos shows de Roger Waters ela nunca falha. E quando adentramos esse território artístico, canções tocam nossos corações, mas também reviram — ou reavivam — nossa consciência política. O desenho do roteiro do show cai como um martelo de alerta na cabeça de todos: estamos entorpecidos procurando diamantes brilhosos através de brechas de um muro que nós mesmos construímos. Essa é a vida que você realmente quer?!  

Não por acaso, o aviso que ouvimos em inglês (legendado no telão) logo no início dos shows no Brasil, serve de último alerta aos desavisados, isso na probabilidade de alguém ter caído de paraquedas na Arena do Grêmio. A passagem do tempo se mostrou mais prejudicial à sociedade — e à raça humana como um todo — do que na obra do próprio artista. Emburrecemos a ponto de ter que desenhar por escrito nos telões durante a abertura do espetáculo o posicionamento político existente na carreira do músico inglês há pelo menos 50 anos. 

Assim, depois de Brasília e Rio de Janeiro, Porto Alegre recebe pela quarta vez um show de Roger Waters. A turnê This in Not a Drill quebra com qualquer metáfora, pois além da própria música, tudo está legendado e explicado (como notas de rodapé). Assim, como detentor de uma obra poderosíssima, o ex-líder do Pink Floyd não apenas quer deixar claro que é o mentor intelectual da maior parte das músicas, pois ele nos reforça de seu protagonismo o tempo todo.  

Crédito: Lucas AlvarengaAlva Filmes. Foto: Paulo Corrêa/ No Palco

A apresentação começa com a música que ele se despediu de Porto Alegre há exatos 5 anos, "Confortably Numb". Naquele 30 de outubro de 2018 a chuva forte caiu bem no fim do espetáculo, o que mobilizou a equipe técnica a armar pequenos toldos no palco para proteger os músicos e o equipamento. Desse modo, a apresentação precisou ser encurtada. "Confortably Numb" é um dos temas mais conectados à memória de David Gilmour no Pink Floyd. O solo do guitarrista, por exemplo, é considerado um dos mais épicos da história do rock. Na versão que abre o tour This is Not a Drill, Waters surge de jaleco, empurrando uma cadeira de rodas, ampliando os aspectos claustrofóbicos da letra. O solo da música é sumariamente cortado, aproximando a releitura desse clássico do álbum "The Wall" à experiência de ouvi-la 'restaurada' e próxima ao gospel, ainda mais reflexiva.               

Contudo, qualquer perda de identidade ou tentativa de autossabotagem se evanesce com a suíte "The Happiest Days of Our Lives", "Another Brick in the Wall, Part 2" e "Another Brick in the Wall, Part 3", tocada de maneira fiel ao modelo do disco. Roger está solto no palco, sem o contrabaixo, atuando praticamente como um crooner.  

A banda é irretocável em suas execuções. No grupo base, novamente temos o velho colaborador do Pink Floyd, Jon Carin — piano, teclados, programações, violão, marxófono e vocais; David Kilminster (Keith Emersom e John Wetton) — toca guitarra e baixo; Guy Seyffert (Black Keys, Norah Jones) — colabora na guitarra, baixo e vocais; outra presença importante, Jonathan Wilson (Robbie Robertson, Crosby, Stills & Nash) — assume guitarra, baixo, acordeon e faz vocais principais em dois temas. Completam o time, Robert Walter — Hammond B3 e teclados;  Seamus Blake — saxofone e clarinete; Joey Waronker (Beck, R.EM) — bateria; Amanda Belair e Shanay Johnson estão no vocais de apoio e percussão). 

Logo depois do recorte "The Wall", uma tríade feita de canções da sua carreira solo adentra com contundência o território político. Em inglês, "os poderes constituídos" (TPTB) é uma abreviação utilizada para se referir aos indivíduos ou grupos que coletivamente detêm um domínio específico. "The Power That Be", de "Radio K.A.O.S", é uma manifesto irônico contra os fomentadores da guerra: “They like fear and loathing/ They like sheep's clothing — Eles gostam do medo e da aversão/ Eles gostam de pele de cordeiro —. Ele ainda bate nas extravagâncias da burguesia belicista: "They like a bomb proof cadillac/ Air conditioned, gold taps/ Back seat gun rack, platinum hub caps" — Eles gostam de cadillac a prova de bombas/ Ar-condicionado, torneiras de ouro/ Suporte de armas no banco de trás, calotas de platina — a música segue tão atual quanto naquela segunda metade dos anos 1980, como ainda ganha novo gás nessa versão ao vivo. No telão, Waters paga homenagem personalidades mundiais mortas com diversos tipos de violência, entre elas, a vereadora carioca Marielle Franco.

Crédito: Lucas AlvarengaAlva Filmes. Foto: Paulo Corrêa/ No Palco

Na mesma via, "The Bravery of Being Out of Range", de "Amused to Death", inspirou-se na luta à distância na Guerra do Golfo (1990-1991) como um jogo de videogame, e assim Roger utiliza a ironia e o deboche para calcificar a estupidez de uma guerra: "Hey bartender over here, two more shots/ And two more beers/ Sir, turn up the tv sound/ The war has started on the ground/ Just love those laser guided bombs/ They're really great for righting wrongs/ You hit the target and win the game/From bars 3,000 miles away" — Ei garçom, mais duas doses/ E duas cervejas/ Senhor, aumente o volume da TV/ A guerra começou por terra/ Amo aquelas bombas guiadas a laser/ São ótimas para corrigir erros/ Você acerta o alvo e vence o jogo/ Nos bares, a 3000 milhas de distância —. E não é a mais pura realidade do que você assiste ainda hoje pelos telejornais? Se o Pink Floyd a tivesse gravado não seria um disparate. 

O cantor explicou em entrevista à TV Brasil para o jornalista Leandro Demori que "The Bar", canção ainda não gravada, pode ser entendida como um espaço onde as pessoas partilham suas opiniões e debatem amistosamente as divergências. A letra reflete à frustração de viver em um mundo que parece um zoológico humano. “É um lugar imaginário na minha cabeça, mas é também real. Existem bares em todo o lugar. Nesse conceito, é um local onde você pode tomar uma bebida e encontrar seus amigos e, quem sabe, conhecer estranhos sem medo", explicou Waters. 

"Have a Cigar" é motor de propulsão floydiano onde as guitarra de Kilminster e Wilson espelham tudo aquilo que bem conhecemos dos discos. O trabalho das vocalistas de apoio é sublime, tanto do ponto cênico, mas principalmente nos backings: onde a voz de Waters não chega, Amanda e Shanay encaixam suas vozes sombras e ocupam os espaços. Imagens da primeira formação do Pink Floyd surgem no telão. Procure alguma foto de David Gilmour ou imagem do guitarrista em vão em "Wish You Were Here", nenhum resquício será encontrado. Aqui é a hora e a vez de Syd Barrett, a mente criadora do início de tudo para o grupo, de onde veio até mesmo o seu nome, pinçado de dois músicos de blues. A seguir, Amanda e Shanay continuam brilhando, e a magia segue fluindo em "Shine on You Crazy Diamond" (parts VI-IX). A imagem de Jon Carin nas teclas premia um dos grandes escudeiros do Pink Floyd, mas que também já trabalhou com Waters e Gilmour em ambas carreiras solo. As meninas dançam e o sax de Seamus Blake é absolutamente idêntico à lembrança memorial deste clássico. 

Em "Sheep", a fantástica viagem da ovelha voadora agita o público. Na penúltima faixa da jornada de “Animals”, Waters se volta à servil classe trabalhadora: “Hopelessly passing your time in the grassland away/ Only dimly aware of a certain unease in the air” — Passando meu tempo no pasto distante. Vagamente atento a um certo desconforto no ar” —. Aqui a discussão está baseada na passividade em aceitar o destino de exploração, de fechar os olhos para as mazelas e seguir adiante, desprezível e inofensiva como um ovelha sendo guiada por um entediado pastor rumo a desolação. 

Crédito: Lucas AlvarengaAlva Filmes. Foto: Paulo Corrêa/ No Palco

Após um intervalo de 20 minutos, agora é o porco voador que flana sobre nossas cabeças, antecipando uma segunda parte da noite ainda mais emoções. As críticas destinadas a "In the Flesh" e sua ambientação teatral surtiram efeito. O desenho cênico da música foi drasticamente alterado, um dos pontos negativos da perna brasileira da turnê This is Not a Drill, pois tratava-se de um dos picos do espetáculo. As roupas anteriores de Waters — um casaco preto com braçadeiras vermelhas — lembravam o uniforme de um oficial da SS, o que lhe causou problemas, apesar de não ser uma novidade em seus shows. Na verdade essa encenação reprisa o astro do rock de "The Wall" interpretado por Bob Geldof, que após uma overdose enlouquece feito um ditador num comício fascista, com o público o apoiando. Agora, Roger surge numa cadeira de rodas e preso a uma camisa de força, empurrado por enfermeiros. O anticlímax se esvai com a sequência em "Run Like Hell", um dos momentos mais guitarrísticos do show e mais uma daquelas músicas indissociáveis à memória de David Gilmour (ele inclusive a tocou na mesma Arena 8 anos antes). Novamente a dupla de guitarristas não deixa dúvidas de sua capacidade de materializar à lembrança fidedigna do Pink Floyd. 

"Déjà Vu" é um dos eixos centrais em "Is This Life We Realy Want?", quando Roger se coloca na posição de Deus: “If I had been God, I would have rearranged the veins in the face to make them more resistant to alcohol and less prone to aging” — Se eu fosse Deus, teria redesenhado as linhas do rosto para torná-las mais resistentes ao álcool e menos propensas ao envelhecimento, canta. Frente a atrocidade humana, exibindo imagens de palestinos e de cidades devastadas pelas guerras, um questionamento do movimento cíclico da humanidade e sua capacidade de repetir os mesmos erros: "The temple's in ruins/ The bankers get fat/ The buffalo's gone/ And the mountain top's flat/ The trout in the streams are all hermaphrodites/ You lean to the left but you vote to the right" — O templo está em ruínas/ Os banqueiros continuam ricos/ O búfalo se foi/ E o topo da montanha está plano/ As trutas nos córregos são todas hermafroditas/ Você se inclina para a esquerda, mas vota na direita. Julian Assange ganha destaque no telão. Ao vivo, "Déjà Vu" se impõe como uma de suas melhores canções deste século. 

"Is This the Life We Really Want?", faixa-título do seu quinto álbum de estúdio, emula uma conversa do presidente Donald Trump com Jim Acosta, da CNN: "The goose has gotten fat/ On caviar and fancy bars/ And subprime homes and broken homes/ Is this the life, the holy grail?/ It’s not enough that we succeed/ We still need others to fail" — O ganso engordou/ A base de caviar, bares chiques e ossos hipotecados/ E lares destruídos/ É essa é a vida ? O cálice sagrado?/ Não é o suficiente nós termos conseguido?/ Ainda precisamos que os outros falhem —. Como um filme ou um documentário musical da Netflix, Para que não haja dúvidas da entrega total da mensagem que está nela, a música inteira é legendada em português. 

Na parte final, é emocionante sabermos que o Lado B de "The Dark Side of the Moon" é tocado na íntegra na atual turnê. "Money", "Us and Them", "Any Colour You Like" (com destaque para o duelo alternância dos solos de guitarra entre Kilminster e Wilson), "Brain Damage" e "Eclipse" soam como uma grande epopeia musical, em irretocável participação dessa banda com 10 integrantes que reproduz ipsis litteris um dos ‘discos entidade’ da cultura pop mundial. Pingos tímidos de chuva começam a pipocar timidamente pela abóbada da Arena. Será que novamente teremos o abreviamento do show?

Ainda há tempo... Depois de sermos sabotados pelo tempo ruim em 2018, finalmente Porto Alegre tem a sua versão de "Two Suns in the Sunset". Logo ouvimos o barulho de carros cruzando e o violão puxando o riff com a banda vindo atrás. A releitura ao vivo é mais lenta, reflexiva, semelhante ao vídeo lançado durante a pandemia. O audiovisual de animação no telão mostra uma viagem tranquila de um viajante solitário vista de cima, como se fosse filmada por um drone. Até que explosões nos lembram que o holocausto nuclear finalmente aconteceu. 'Two Suns' joga luz na despedida de Roger Waters do Pink Floyd, e num dos discos mais controversos da banda, "The Final Cut", mas certamente envelheceu com dignidade e continua a dar seu recado sobre os desvarios da humanidade. A chuva não veio e o baile segue. 

Antes de cantar a ainda inédita "The Bar (Reprise)", o músico reverencia sua esposa, o irmão morto recentemente e Bob Dylan, fonte de inspiração para a nova canção. No tema, Roger revisita trechos de canções de Bob como "Sad Eyed Lady of the Lowlands", Lay Lady Lay" e "Blowin' in the Wind", além de "The Long and Winding Road", dos Beatles, pegando o mote das letras e reescrevendo-as como um hino pacifista. A banda toda se aproxima do piano, como se realmente estivesse tocando informalmente num ambiente de bar. Até que em "Outside the Wall", ele nos relembra do final da turnê de "The Wall" (é o mesmo desfecho), quando os músicos vão sendo apresentados um a um, saindo em fila única, ao estilo de New Orleans, como se estivem desfilando numa second line tocando instrumentos acústicos. Os saltimbancos dão adeus, embarcam na espaçonave e deixam o palco como se fossem passageiros de ônibus estelar... para nunca mais retornar? 

A grande importância de testemunharmos algo que infelizmente será comum daqui pra frente — a despedida de gigantes da música — é principalmente perceber o carinho deles com o público. Assim como Roger Waters, tantos outros já poderiam estar fora de cena, possivelmente desfrutando da perigosa sensação de dever cumprido. De todo o modo, as novas gerações continuam redescobrindo sua obra e a reavivando. É surreal pensar que lá se vão 21 anos desde nosso primeiro encontro com o ex-Pink Floyd. Quem diria que depois daquele show de 2002, no Estádio Olímpico, em Porto Alegre, ainda veríamos ele novamente na mesma cidade, com dois shows no Estádio Beira-Rio (2012 e 2018) — e agora na Arena do Grêmio. Depois de duas décadas, enquanto o local do primeiro show está abandonado e em ruínas, o artista nos holofotes segue firme ainda derrubando muros — aos 80 anos! 

Instantes depois do show, uma chuva torrencial deságua em Porto Alegre. Lavamos a alma.

Agradecimento especial a Paulo Correa/@nopalcors (fotos) Bia Fraga/@bonustrack.live e pelo suporte e convite. 

Crédito: Lucas AlvarengaAlva Filmes. Foto: Paulo Corrêa/ No Palco

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