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| Foto Laura Aldana | |
Final de domingo, uma chuva fina cai sobre Porto Alegre. A pé, cruzo a Avenida Osvaldo Aranha em direção ao Araújo Vianna, no caminho, um morador de rua, deitado em frente a uma loja, levanta a cabeça do colchão e me pergunta qual é o show da noite. Ao ouvir a resposta, ele me grita enquanto atravesso a rua:
— Pede pra Chrissie tocar Don't Get Me Wrong, diz o sujeito tomado por uma euforia momentânea. Nunca menospreze o poder de um hit, penso.
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Foto: Laura Aldana |
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Foto: Laura Aldana |
Atualmente, como headliner,
os Pretenders se apresentam em casas de espetáculo e teatros menores, um território
onde Chrissie se sente à vontade: “Pessoalmente, não consigo curtir um show de
três horas. Prefiro ver a banda de perto ao invés de assisti-la pelo telão. E
da minha posição, como artista, gosto da possibilidade de poder enchergar os
espectadores com meus próprios olhos”, disse em entrevista. “Poderíamos estar
tocando em lugares maiores, ganhando mais dinheiro e conquistando mais
prestígio. Contudo, não damos a mínima para essas coisas”, complementa. Quem a
acompanha ao longo dos anos sabe, Chrissie não mede as palavras e, além
de seu ativismo em prol dos direitos dos animais e questões ambientais, a
vocalista ainda vê no rock e no seu métier um instrumento de
revolução ao modelo do Século XX.
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Foto: Laura Aldana |
O fato é que os Pretenders estão
na estrada com um dos melhores shows de rock da atualidade. O setlist mescla
canções de nove dos doze álbuns lançados em quatro décadas e meia de atividade,
e ainda promove um avant-première de “Kick ‘Em Where It Hurts – Live”, disco ao
vivo que será lançado em junho. A formação que está no álbum é a mesma que vem
ao país. Além de Chrissie Hynde (voz, harmônica e guitarra), o grupo apresenta armas na
Latin America Tour com James Walbourne (guitarrista e grande parceiro de Hynde
nas composições), Dave Page (baixo) e Rob Walbourne (bateria). O trabalho de
estúdio mais recente, "Relentless" (2023), é uma confirmação de que o
grupo vive essa ótima fase, assim como os anteriores, "Hate For Sale"
(2020) E "Alone" (2016).
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Foto: Laura Aldana |
Araújo Vianna, 3 mil pessoas saíram de casa num domingo de tempo instável para assistir a atual encarnação do grupo. 20h15, banda no palco, aos 73 anos, Chrissie Hynde mantém sua silhueta esguia, sombra nos olhos e o cabelo vermelho desgrenhado com estilo, os penduricalhos, calça jeans com botas de couro que sobem acima do joelho. A capa de "Freak Out" (1966) de Frank Zappa & The Mothers estampa a camiseta cantora, um aceno à transgressão de um dos grandes guitarristas da história. A mistura de rock clássico, pós-punk, new wave e pop é a cartilha do som dos Pretenders, porém, nos últimos álbuns, há sínteses e subtrações dessa fórmula. A exemplo, nas canções recentes, encontramos ótimas letras, menos doçura e mais agressividade musical.
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Foto: Laura Aldana |
Desse modo, inicialmente destituído de uma
intenção pop, o show abre com uma das novas, "HATE FOR SALE",
que diz: "Dinheiro no banco e cocaína no bolso/ Pornô o dia todo (...) Implante dentário/ Oh, ele vai à academia/ Peito depilado",
é um retrato crítico, punk e turbulento do macho idiota propagado nas redes e nos
dias de hoje. “Estou descartando um repertório só de hits. Eu nunca quis ir
para essa direção, mas precisava me manter viva e pagar as contas. Se alguém
quiser me assistir no futuro, vai ser punk rock/sem sucessos”, declarou
Chrissie. O show tem esse contraste: um vai e vem entre o pop e o anti-pop.
"TUFF ACCOUNTANT DADDY", mais uma do último álbum, mantém a
corda esticada. James Walbourne arrepia no solo e mostra porque é
o melhor guitarrista que já passou pelos Pretenders — "Queria cortar as
mãos dele", disse Jeff Beck a Chrissie Hynde, ao visitá-la no back stage
de uma apresentação do grupo em 2017. Hoje, Walbourne é parte do organismo vivo
que o grupo se tornou.
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Foto: Laura Aldana |
"KID" é a primeira que nos leva direto ao cânone do pop rock dos anos 1980. Ela ainda é uma das minhas cantoras de rock favoritas, dona de um contralto flutuante e sempre expressivo. A maneira como Chrissie ondula cada linha vocal – aquele trêmulo característico – é sublime. O timbre é inconfundível, e não há nenhuma subtração nessa entrega, apesar da líder da banda já ter passado dos 70 anos. "MY CITY OF GONE", de "Learning to Cry" (1984) foge da risca Greatest Hits. É um aceno a cidade natal de Hynde, como ela anuncia antes de tocá-la, conectando sua história com qualquer pessoa que tenha deixado para trás sua terra, emprestando aquela sensação de nostalgia e perda.
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Foto: Laura Aldana |
Antes de tocar "THE BUZZ", Chrissie avisa ao público que essa missiva tem endereço: é uma homenagem a Johnny Thunders, lendário guitarrista do New York Dolls. É também uma das melhores músicas do rock and roll feitas neste século, detentora das credenciais que forjaram o grupo. E mesmo que James Walbourne não tivesse nem nascido quando os Pretenders surgiram (ele veio ao mundo no que o primeiro LP foi lançado), sua guitarra tem o som dos Pretenders.
Dentro do preset do show, há passeios por vários estilos — "PRIVATE LIFE" (reggae), "BOOTS OF CHINESE PLASTIC" (psychobilly) e o rock dos anos 1950 repaginado com tintas oitentistas impregna "THUMBELINA". Não à toa, a capa do próximo álbum recicla uma iconografia clássica de Elvis (que o Clash chupou em London Calling), assim como Chrissie aparece em fotos de divulgação com uma imagem do Rei do Rock na sua camiseta. "TALK OF THE TOWN" é puro saudosismo, mas soa novinha em folha nessa noite no Araújo.
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Foto: Laura Aldana |
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Foto: Laura Aldana |
"TIME THE AVENGER" bota fogo no parquinho e a releitura de "FOREVER YOUNG" empresta uma beleza magnânima e quase introspectiva. Se você não viu Chrissie cantando “I Shall Be Released” em 1994 no Bob Fest, corra até o YouTube, ela canta Dylan com propriedade e pode até errar a letra (a cantora gravou um álbum apenas com canções do bardo). Se "NIGHT IN MY VEINS" é um som moldado para as FMs dos anos 1990, "MIDDLE OF THE ROAD" (com direito ao coro atento do público) é uma pedra de quebrar vidraça, com Chrissie levantando o público com o solo de harmônica empapado de distorção e atitude, mote final para que a banda deixe o palco ovacionada pela plateia.
O bis começa com dois clássicos, "MESSAGE OF LOVE" e a sempre bem-vinda releitura dos Kinks "STOP YOUR SOBBING", assim como “TATTOED LOVE BOYS", um antigo flerte com o pós-punk. No segundo bis, "I'LL STAND BY YOU", com Chrissie sem a guitarra e cantando como crooner, emociona e mostra o poder de uma canção pop que ultrapassou o tempo e segue batendo forte. Nem precisaríamos ouvir "PRECIOUS" e "MYSTERY ACHIEVEMENT", um último sopro de resistência ao lado mais indomado do quarteto no palco, mas esse final passa um recado: os Pretenders começam e terminam seu show ondulando na turbulência do rock, sempre com autenticidade e rebeldia. A cola de tudo está no pop e na força do hit, uma fórmula invocada pelos grandes. Afinal, nem todo mundo tem um sucesso pra chamar de seu. A apresentação no Araújo Vianna foi a mais longa até agora na Latin America Tour, com 24 músicas, prova de que a noite foi especial.
Na saída, de volta pra casa, reencontro o morador de rua e digo que os Pretenders tocaram “Don’t Get Me Wrong”. O sujeito, escorado na parede fumando um cigarro imaginário, abre um sorriso gigante. Nunca subestime o poder de um hit... Da Capital gaúcha o grupo segue para Curitiba (20), Brasília (22) e São Paulo (24). Cobertura: Grings Tours | Quando o Som Bate no Peito. Review: Márcio Grings. Fotos: Laura Aldana. Agradecimento: Paulo Finatto (Opinião Produtora), credenciamento, suporte e assessoria.
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