Foto: Márcio Grings (Samsung J5) |
Lembro da minha frustração em 2 de agosto de 1988, data do lendário show do Jethro Tull no Gigantinho em Porto Alegre. Na época, Ian Anderson e sua trupe divulgavam "Crest of Knave" (1987), um dos discos medianos que o Tull lançou naquela década. "Foram os três solos de flauta mais longos que vi num show de uma banda de rock! E o público enlouqueceu", relembra o músico Rafael Ritzel, que nessa noite de 9 de outubro está ao meu lado. De todo o modo, Ritzel ainda se orgulha de ser uma das testemunhas daquele evento histórico na capital gaúcha, época em que o RS estava longe de ser um corredor de passagem para bandas internacionais.
Voltando a 2017, todos sabemos que rock e o mercado fonográfico mudaram radicalmente, as formas de ouvir música são outras. Álbuns não vendem tanto quanto há 30 anos, e hoje, artistas que construíram sua história nas décadas de 1960/70 não apenas precisam cair na estrada para reaquecer o interesse pelas suas obras, eles também sabem que os tours passaram a ser pilares de conexão, isso tanto com os fãs devotos, como também frente a novos públicos. E o mais importante: - digressões são fontes de renovação para eles próprios.
Foto: Márcio Grings (Samsung J5) |
21h em ponto: - quando vemos Ian Anderson, 70 anos, corpo ainda esguio, coreografando as cenas clássicas que conhecemos das capas do discos/fotos/vídeos de shows antigos, a sensação é de que essa magia estradeira realmente é essencial para muitos artistas. Se aos 29 anos, o compositor de "Too Old To Rock'n'roll" cantava a decadência do rock e questionava o futuro do gênero, 40 anos depois cá está Ian, entoando a mesma canção e ainda fazendo o seu trabalho a moda antiga. E muito bem! Instrumentalmente, o líder do Tull continua sendo um artista impressionante. Já a garganta, apesar de ainda guardar o conhecido timbre, perdeu a potência, revelando um vocalista mais cuidadoso. Nada que o desabone da sua capacidade de encantar uma audiência. Esse talento permanece intacto. "Com a carreira que o Ian tem, ele pode fazer o que quiser", alerta Ritzel ao pé do ouvido.
Foto: Márcio Grings (Samsung J5) |
No palco, além do lendário líder (flauta, voz e violão), temos dois integrantes que prestam serviços ao Tull a uma década - David Goodier (baixo e voz) e John O'Hara (teclado). Já o músico alemão Florian Opahle (guitarra), com passagem pela banda de Gregg Lake, fixou residência no grupo desde 2003. Completa o time, Scott Hammond (bateria), desde 2010 na banda. A apresentação começa com "Living in the Past", seguida de "Nothing is Easy" e "Heavy Horses", temas pinçados a dedo da joia da coroa da obra desenhada desde 1968 por Ian Anderson. Aos primeiros acordes do violão base de "Thick As A Brick", previsivelmente o público efervesce.
Foto: Márcio Grings (Samsung J5) |
Uma das maiores virtudes da trajetória musical do grupo britânico é justamente o cruzamento da tradicional linha de montagem de uma banda de rock com a música erudita e folclórica europeia. E não estão aí um dos pilares do rock progressivo? E esse é um dos pontos altos da noite, quando instrumentalmente a música do Tull ainda soa assombrosa meio século depois de seu descobrimento. É justamente essa teia sonora que nos deixa impressionados em "Bourée" e "Pastime in Good Company", quando fica fácil associar a figura hiperativa de Ian Anderson com antigas lendas do velho mundo. Iconicamente sua performance também colabora para essa associação, quando a cada movimento e soprada na flauta transversal - novas caretas e olhares são lançados a audiência.
Foto: Márcio Grings (Samsung J5) |
Depois de um breve intervalo de 20 minutos (chance pra colocar o papo em dia com vários amigos presentes), às 22h16, as imagens vampirescas no telão colorem ainda mais "Sweet Dream". Capitaneado pela guitarra de Florian Opahle, esse tête-à-tête entre a sonoridade medieval e o rock pesado alicerça o modus operandi do Jethro Tull, e ao vivo, mesmo com essa formação distante dos membros originais (exceto Ian, é claro) - a torna ainda mais impressionante e translúcida. E há um equilíbrio entre performance e malabarismos musicais, pois tanto as geniais intervenções da flauta de Anderson, quanto os solos de bateria (Dharma For One) e até mesmo o ápice guitarrístico (Tocatta and Fugue in D Minor), surgem equalizados numa proporção exata, sem excessos. Também é necessário lembrar da raiz blues do Tull, uma memória alinhavada por exemplo na gaita de boca de Ian em "A New Day Yesterday", outro momento especial do set.
Foto: Márcio Grings (Samsung J5) |
E toda as percepções eclodem rumo ao clímax perfeito: "My God", momento em que a 1ª música do Lado B de "Aqualung" faz o preâmbulo e prepara a cama para a faixa título, um dos momentos mais esperados da apresentação. 'Quem nunca ouviu Aqualung que atire a primeira pedra!'. Quem nunca topou com a capa de um dos mendigos mais célebres do rock? E no bis, "Locomotive Breath" surge como um trem bala rumo ao desconhecido, deslizando para uma fronteira além das nossas expectativas iniciais. Em sua 8ª passagem pelo país, finalmente o garoto de 1988 ressuscitou na plateia de um show do Jethro Tull. Lá estava ele, bem em frente ao palco, envelhecido, hipnotizado a registrar tudo com seus olhos e ouvidos... Parado como uma estátua barbuda saída diretamente da imagem do LP.
Nossos agradecimentos a Agência Cigana pelo suporte e credenciamento.
Jethro Tull performed by Ian Anderson - setlist PoA
Set 1:
Living in the Past
Nothing Is Easy
Heavy Horses
Thick as a Brick
Banker Bets, Banker Wins
Bourrée in E minor
Farm on the Freeway
Too Old to Rock 'n' Roll, Too Young to Die
Songs From the Wood
Set 2:
Sweet Dream
Pastime With Good Company
Fruits of Frankenfield
Dharma for One
A New Day Yesterday
Toccata and Fugue in D Minor
My God
Aqualung
Bis:
Locomotive Breath
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