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quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

DAVID GILMOUR - PORTO ALEGRE, 16 DE DEZEMBRO DE 2015


Fotos: Gika Oliva

Por Márcio Grings Fotos: Gika Oliva

Com o passar do tempo, as canções do Pink Floyd, seus álbuns e o conjunto da obra do grupo, se amplificam após sucessivas audições. Daí você percebe que parte de tudo isso descreve um monte de coisas sobre você. Incrível, mas é um tipo de som que não enferruja, com uma parte substancial desse material totalmente conectado ao tempo real. Estamos falando de uma banda que estabeleceu padrões, detentora de um conteúdo intelectual absurdo, conceitual — das capas e artes  construídas para empacotar sua música, até mesmo nas letras repletas de dilemas atuais. 

Exploradores, quatro décadas antes, Roger Waters, David Gilmour, Richard Wright e Nick Mason foram os primeiros a usar os estádios como um teatro vivo para suas peças musicais. É deles a jogada de buscar acessórios, objetos voadores, telões, pioneiros em proporcionar aos fãs o arrebatamento da experiência quadrifônica , e assim o Pink Floyd reinventou o negócio musical nos anos 1970, galáxia temporal onde eles moviam as peças e conduziam meio mundo. Cresci ouvindo “The Dark Side of The Moon” (1973), manual prático de como viajar ouvindo um LP — música para a mente, esse é o recado. Já em “Pink Floyd - The Wall” (1979), disco e filme, ampliei o campo de visão numa cartilha completa. Há um afronte às relações familiares, experiências sociais repressoras, um alerta sobre o renascimento do fascismo, do preconceito contra o diferente e visões do desastre causado pelo estrelato, isso quinze anos antes de Kurt Cobain acabar com a própria vida.

Foto: Gika Oliva

É comum vermos os fãs elencarem seu integrante predileto, e, no caso do Pink Floyd, apesar de apreciar a digital única da guitarra de David, sempre me declarei um waterista convicto. Gosto do espírito das canções de Roger. Quando o grupo voltou à ativa em 1987, com "A Momentary Lapse of Reason", não foi fácil aceitar aquela formação capenga. A impressão é que o Floyd carecia da visão ácida e emocional de Roger Waters, assim como o baixista, em viagem solo, parecia sentir falta da sutileza da banda que o expurgou. "Tragam o comunista de volta!". Essa sensação foi exorcizada em “The Division Bell” (1994), um trabalho que a cada nova audição expõe uma incrível força criativa e que ainda espalha suas sementes, além de revogar a independência de David Gilmour como compositor, apoiado pelas letras da esposa, a jornalista e escritora Polly Swanson. 

E assim damos um salto até 2015 e o Rattle That Lock Tour com David Gilmour e sua banda. Depois de ter assistido a Roger Waters três anos antes, agora chega a noite de ver o seu desafeto. É quando me vejo doido de uísque, envolto numa nuvem de êxtase — culpa de uma ação de marketing de uma marca de bebida (atitude muito pouco profissional da minha parte, como repórter credenciado).  Assim, essa narrativa começa na parte final da apresentação, em pleno transe ao som de “Coming Back to Life”. Desse modo, trôpego, mas compenetrado ao extremo, eu quebro minha promessa de deixar o celular no bolso. Levanto o aparelho e faço a única e tremida imagem da noite. O celular cai, e a tela do smartphone racha ao meio. Bem feito! Nada de novo no front...  

Foto: Gika Oliva

Voltemos ao início. Consagrado pelos fãs antes mesmo do roadie lhe entregar sua guitarra, David Gilmour surge no palco ainda obscuro e acena para o público. Atrás dele, "Mr Screen" dá sinal de vida, na posição de lua cheia que irrompe a bruma de uma noite sem estrelas. Assim foi apelidado o enorme telão circular, espólio tecnológico do Pink Floyd e que também passou a ser uma das atrações das turnês do guitarrista . E cá estamos nós, em pleno raio de ação do Olho de Hórus da cultura pop. Blue lights and blue notes in “5 A.M”, abertura de seu novo álbum e da atual turnê, quase uma peça sinfônica pensada para promover uma ligação íntima com o público. Um coro introduz “Rattle That Lock”, faixa título que nomeia esse recorte temático na vida do guitarrista, e que não passa de um desobstruído flerte com o pop. A plateia canta o refrão e, assim, arranca sorrisos do orgulhoso compositor. 

A claustrofóbica “Faces of Stone”, música inspirada na demência de Sylvia Gilmour, mãe de David, expõe uma personagem que vê rostos de pedra pendurados nas árvores. Percebo uma energia estranha que irradia dessa música, algo perturbador, alinhado ao seu audiovisual . Quando o guitarrista retorna ao coração de sua música, sinto o pulso de “Wish You Were Here”, a começar pelo rádio que zapeia pelo dial e decepa no meio um trecho da Quarta Sinfonia de Tchaikovsky. Em seguida, ouvimos uma das mais celebradas introduções da história do rock — o violão de doze cordas tocado por Phil Manzanera (Roxy Music) deflagra inevitáveis bramidos do público, que toma conta da Arena. Mesmo ao vivo, ouço o crepitar de uma fogueira, visão noturna embebida numa visão adulterada da música country. Gilmour reproduz o solo que conhecemos tão bem. É uma das peças eclesiásticas da música mundial, homenagem a Syd Barrett e hino das almas perdidas em asilos voluntários (ou não), mas certamente um clamor sobre a ausência que algumas pessoas deixam ao sumirem do mapa, um aviso sempre necessário aos saudosistas convictos. Nunca me cansarei de ouvi-la, ainda mais assim, ao vivo, tocada por um dos pais da criança. Emocionante. Eu disse: e-mo-ci-o-nan-te! 

Foto: Gika Oliva

Algumas faixas do novo disco do guitarrista já estão na boca do povo, como é o caso de “A Boat Lies Waiting”, mas, quando ouvimos “High Hopes”, todo o restante é soterrado no esquecimento. É nela que o compositor faz um balanço das perdas e ganhos da vida, obra-prima de “The Division Bell” que facilmente pode ser incluída no panteão das grandes canções do Pink Floyd. Quando o baterista Stevie DiStanislao (Don Felder Band) bate no metal e percute um fictício sino do coveiro, há uma simbologia nessa atuação, um rito de passagem que sepulta as pardacentas sombras do passado.   

Ares de folk rock com “The Blue”, uma das melhores músicas de “On an Island” (2006), seu terceiro álbum solo, o preferido de muitos de seus fãs e da crítica — o meu álbum solo do coração ainda é “About Face” (1984), que infelizmente é carta fora do baralho em seu repertório atual. Som de moedas e caixa registradora antecipa “Money”, e uma explosão de alegria toma conta da Arena, saudação a um dos maiores hits da história do rock. “Us and Them” é simplesmente uma definição tridimensional do Pink Floyd e de tudo o que David Gilmour representa. Esse é o momento em que ouvimos o saxofonista brasileiro João Mello (Razorlight), substituto da lenda viva Dick Parry, já que este está com problemas de saúde. Indicado por Phil Manzanera, o músico curitibano que mora na Inglaterra há três anos, acaba de entrar para a banda de Gilmour. Ele ainda é uma presença tímida entre tantas cobras criadas, mas, quando surge debaixo de um holofote só seu, reprisa detalhadamente os sopros que conhecemos tão bem. Não há dúvidas sobre o talento do garoto (João tem apenas 20 anos), que vive seu sonho dourado como profissional da música.  

Foto: Gika Oliva

A floydiana “In Any Tongue”, é mais uma faixa extraída do trabalho recente — ele ainda tocaria “The Girl in the Yellow Dress” e “Today”, totalizando sete faixas no set de “Rattle That Lock”, o que mostra o alto quilate de seu quarto álbum individual. É importante mencionar que os temas mais recentes se infiltram com propriedade ao lado dos hits, e o público nunca arrefece seu entusiasmo com o ídolo.        

O delírio de "Astronomy Domine”, gênese do rock espacial capitaneado em álbum por Syd Barrett, ganha um show de cores disparadas pelas luzes dos refletores e pelas imagens de Mr. Screen. “Shine On You Crazy Diamond” é pura introspecção. O início, com o palco escuro, instantâneo, onde o velho colaborador do Floyd, Jon Carey (piano, teclados, lap steel, guitarra, voz de apoio e responsável pela voz principal em Time e Comfortably Numb), reprisa toda a climática dos teclados conhecida milimetricamente pelos fãs, um minuto e meio só dele. É simplesmente um dos prólogos mais fantásticos do rock. Quando Gilmour começa a solar, numa introdução que não acaba nunca (graças ao criador!), estamos enredados no mais puro blues progressivo, completamente aprisionados no verdejante Planeta Pink Floyd. A letra, que novamente revoga a ausência de Syd Barrett, é de uma melancolia insuportável, uma infusão tão profunda que invade os dois lados de “Wish You Were Here” (1975). Também estão em turnê na Ratlle That Lock nomes como Guy Pratt (baixo, voz de apoio e voz principal em Run Like Hell), praticamente um integrante da família (ele é genro do falecido tecladista Richard Wright); Kevin McAlea (piano, teclados e acordeom); além de Brian Chambers (voz de apoio, percussão e vocal principal em In Any Tongue) e Lucita Jules (voz de apoio), colaboradores fundamentais nessa viagem em que somos meros passageiros.            

Foto: Gika Oliva


A balada folk “Fat Old Sun”, de “Atom Heart Mother” (1970), é um oportuno resgate nesse repertório. Retrato folk de Gilmour e da maciez de sua interpretação ao descrever uma cena pastoral. Poucas horas após o show, no Facebook oficial de David, foi divulgado um vídeo de uma garota colada à grade, cantando um trecho da música: “Pick your feet up off the ground / And if you hear as the warm night falls / The silver sound from a time so strange / Sing to me, sing to me” . O audiovisual captado por Gavin Elder  possui apenas 30 segundos, mas é um belo extrato do encantamento que a música do Pink Floyd deflagra nos fãs. 

Mais adiante, “Sorrow”, de “A Momentary Lapse o Reason”, começa a desfazer qualquer cena bucólica, pois temos aqui a simbologia da trilha sonora moldada para as grandes arenas, com o solista Gilmour em evidência. Em seguida, já no primeiro riff de “Run Like Hell”, lembrança da ópera rock “Roger Waters - The Wall”, turnê que passou como um tsunami pelo Rio Grande do Sul em março de 2012, novamente ficamos boquiabertos, dessa vez na versão do coautor de uma das músicas mais significativas do Pink Floyd.         

Foto: Gika Oliva

No bis , boa parte das 40 mil vozes cantam o refrão de “Time”. Inevitável lembrança do minifilme do diretor espanhol Sergi Castella , paralelismo que comprova os infindáveis desdobramentos que a obra floydiana deflagra. E o adeus está em “Comfortably Numb”, um dos solos mais celebrados de todos os tempos, a canção de ninar que embala os minutos derradeiros da noite, pílula final que nos conduz com segurança ao adeus. Até a próxima, David!  

Antes de partir para a Argentina, nova etapa da turnê sul-americana, o duro e difícil dia seguinte após nosso encontro, em comunicado no seu Facebook, David Gilmour agradeceu aos fãs e deu detalhes sobre cada apresentação no Brasil: “A Arena do Grêmio é uma das joias de Porto Alegre”, disse. Eu colocaria essa frase numa placa em letras graúdas e convidaria o guitarrista para a solenidade de descerramento. Como casa de shows, o estádio está devidamente aprovado. 

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