Crédito: Lucas Alvarenga/ Alva Filmes. Foto: Paulo Corrêa/ No Palco |
| Por Márcio Grings e Lúcio Brancato |
Há muito tempo Roger Waters entrega músicas onde sua intenção é nos fazer pensar sobre a ordem das coisas. Como sabemos, a veia política está no cerne do Pink Floyd, seja de forma indireta, como em discos como "The Dark Side of The Moon" (1973) e "Wish You Where Here" (1975), ou, até mesmo explicitamente, o que está na íntegra de "Animals” (1977), por exemplo. "The Wall" (1979) seguiu alternando temáticas sociais com dramas existenciais, além de regurgitar traumas da geração baby boomer. Já "The Final Cut" (1983) crava sua âncora temporal na Guerra Fria e num conflito bélico específico — a Guerra das Malvinas/Falklands. Em carreira solo, exceto no seu primeiro trabalho, "The Pros and Cons of Hitch Hiking" (1984), mais brando nas questões políticas — "Radio K.A.O.S" (1987), "Amused to Death" (1992) e "Is This the Life We Really Want?" (2017) são inquestionavelmente alavancados por causas político-sociais. Em suma, o que presenciamos no concerto “This is Not a Drill” é a montagem de uma quebra-cabeças de peças musicais muito bem escolhidas, afinal resumir a despedida dos palcos numa trajetória de tantas décadas entre discos do Pink Floyd e a carreira solo não é uma missão fácil. E aqui mais um mérito do artista, pois ele conseguiu trazer um excelente apanhado contemplando um pouco de tudo.
Ao longo dos anos, os shows de Roger Waters proporcionam para o público uma experiência sensorial completa. O jovem Lúcio, no auge do derretimento coletivo, aos 24 anos, era impactado por um espetáculo de som e luzes como nunca havia experimentado, isso na primeira passagem do baixista pela capital gaúcha, em 2002. Na mesma cidade, exatamente uma década depois, o já quarentão Márcio, aos 42 anos, assistiu boquiaberto a queda do muro como se fosse uma barreira real. E ainda hoje nos maravilhamos pela forma como o artista usa sistemas de áudio imersivos, o surround e outras tecnologias que amplificam todas as sensações possíveis na mente do espectador. Helicópteros, aviões, explosões, gritos de socorro e sintetizadores percorrem o estádio e o nosso corpo nos atingindo de todas as direções. O que vemos no palco integra a plateia fundindo luz, imagem e som, disparando mensagens certeiras onde tudo se complementa.
Crédito: Lucas Alvarenga/ Alva Filmes. Foto: Paulo Corrêa/ No Palco |
Não por acaso, o aviso que ouvimos em inglês (legendado no telão) logo no início dos shows no Brasil, serve de último alerta aos desavisados, isso na probabilidade de alguém ter caído de paraquedas na Arena do Grêmio. A passagem do tempo se mostrou mais prejudicial à sociedade — e à raça humana como um todo — do que na obra do próprio artista. Emburrecemos a ponto de ter que desenhar por escrito nos telões durante a abertura do espetáculo o posicionamento político existente na carreira do músico inglês há pelo menos 50 anos.
Assim, depois de Brasília e Rio de Janeiro, Porto Alegre recebe pela quarta vez um show de Roger Waters. A turnê This in Not a Drill quebra com qualquer metáfora, pois além da própria música, tudo está legendado e explicado (como notas de rodapé). Assim, como detentor de uma obra poderosíssima, o ex-líder do Pink Floyd não apenas quer deixar claro que é o mentor intelectual da maior parte das músicas, pois ele nos reforça de seu protagonismo o tempo todo.
Crédito: Lucas Alvarenga/ Alva Filmes. Foto: Paulo Corrêa/ No Palco |
Contudo, qualquer perda de identidade ou tentativa de autossabotagem se evanesce com a suíte "The Happiest Days of Our Lives", "Another Brick in the Wall, Part 2" e "Another Brick in the Wall, Part 3", tocada de maneira fiel ao modelo do disco. Roger está solto no palco, sem o contrabaixo, atuando praticamente como um crooner.
A banda é irretocável em suas execuções. No grupo base, novamente temos o velho colaborador do Pink Floyd, Jon Carin — piano, teclados, programações, violão, marxófono e vocais; David Kilminster (Keith Emersom e John Wetton) — toca guitarra e baixo; Guy Seyffert (Black Keys, Norah Jones) — colabora na guitarra, baixo e vocais; outra presença importante, Jonathan Wilson (Robbie Robertson, Crosby, Stills & Nash) — assume guitarra, baixo, acordeon e faz vocais principais em dois temas. Completam o time, Robert Walter — Hammond B3 e teclados; Seamus Blake — saxofone e clarinete; Joey Waronker (Beck, R.EM) — bateria; Amanda Belair e Shanay Johnson estão no vocais de apoio e percussão).
Logo depois do recorte "The Wall", uma tríade feita de canções da sua carreira solo adentra com contundência o território político. Em inglês, "os poderes constituídos" (TPTB) é uma abreviação utilizada para se referir aos indivíduos ou grupos que coletivamente detêm um domínio específico. "The Power That Be", de "Radio K.A.O.S", é uma manifesto irônico contra os fomentadores da guerra: “They like fear and loathing/ They like sheep's clothing — Eles gostam do medo e da aversão/ Eles gostam de pele de cordeiro —. Ele ainda bate nas extravagâncias da burguesia belicista: "They like a bomb proof cadillac/ Air conditioned, gold taps/ Back seat gun rack, platinum hub caps" — Eles gostam de cadillac a prova de bombas/ Ar-condicionado, torneiras de ouro/ Suporte de armas no banco de trás, calotas de platina — a música segue tão atual quanto naquela segunda metade dos anos 1980, como ainda ganha novo gás nessa versão ao vivo. No telão, Waters paga homenagem personalidades mundiais mortas com diversos tipos de violência, entre elas, a vereadora carioca Marielle Franco.
Crédito: Lucas Alvarenga/ Alva Filmes. Foto: Paulo Corrêa/ No Palco |
O cantor explicou em entrevista à TV Brasil para o jornalista Leandro Demori que "The Bar", canção ainda não gravada, pode ser entendida como um espaço onde as pessoas partilham suas opiniões e debatem amistosamente as divergências. A letra reflete à frustração de viver em um mundo que parece um zoológico humano. “É um lugar imaginário na minha cabeça, mas é também real. Existem bares em todo o lugar. Nesse conceito, é um local onde você pode tomar uma bebida e encontrar seus amigos e, quem sabe, conhecer estranhos sem medo", explicou Waters.
"Have a Cigar" é motor de propulsão floydiano onde as guitarra de Kilminster e Wilson espelham tudo aquilo que bem conhecemos dos discos. O trabalho das vocalistas de apoio é sublime, tanto do ponto cênico, mas principalmente nos backings: onde a voz de Waters não chega, Amanda e Shanay encaixam suas vozes sombras e ocupam os espaços. Imagens da primeira formação do Pink Floyd surgem no telão. Procure alguma foto de David Gilmour ou imagem do guitarrista em vão em "Wish You Were Here", nenhum resquício será encontrado. Aqui é a hora e a vez de Syd Barrett, a mente criadora do início de tudo para o grupo, de onde veio até mesmo o seu nome, pinçado de dois músicos de blues. A seguir, Amanda e Shanay continuam brilhando, e a magia segue fluindo em "Shine on You Crazy Diamond" (parts VI-IX). A imagem de Jon Carin nas teclas premia um dos grandes escudeiros do Pink Floyd, mas que também já trabalhou com Waters e Gilmour em ambas carreiras solo. As meninas dançam e o sax de Seamus Blake é absolutamente idêntico à lembrança memorial deste clássico.
Em "Sheep", a fantástica viagem da ovelha voadora agita o público. Na penúltima faixa da jornada de “Animals”, Waters se volta à servil classe trabalhadora: “Hopelessly passing your time in the grassland away/ Only dimly aware of a certain unease in the air” — Passando meu tempo no pasto distante. Vagamente atento a um certo desconforto no ar” —. Aqui a discussão está baseada na passividade em aceitar o destino de exploração, de fechar os olhos para as mazelas e seguir adiante, desprezível e inofensiva como um ovelha sendo guiada por um entediado pastor rumo a desolação.
Crédito: Lucas Alvarenga/ Alva Filmes. Foto: Paulo Corrêa/ No Palco |
"Déjà Vu" é um dos eixos centrais em "Is This Life We Realy Want?", quando Roger se coloca na posição de Deus: “If I had been God, I would have rearranged the veins in the face to make them more resistant to alcohol and less prone to aging” — Se eu fosse Deus, teria redesenhado as linhas do rosto para torná-las mais resistentes ao álcool e menos propensas ao envelhecimento, canta. Frente a atrocidade humana, exibindo imagens de palestinos e de cidades devastadas pelas guerras, um questionamento do movimento cíclico da humanidade e sua capacidade de repetir os mesmos erros: "The temple's in ruins/ The bankers get fat/ The buffalo's gone/ And the mountain top's flat/ The trout in the streams are all hermaphrodites/ You lean to the left but you vote to the right" — O templo está em ruínas/ Os banqueiros continuam ricos/ O búfalo se foi/ E o topo da montanha está plano/ As trutas nos córregos são todas hermafroditas/ Você se inclina para a esquerda, mas vota na direita. Julian Assange ganha destaque no telão. Ao vivo, "Déjà Vu" se impõe como uma de suas melhores canções deste século.
"Is This the Life We Really Want?", faixa-título do seu quinto álbum de estúdio, emula uma conversa do presidente Donald Trump com Jim Acosta, da CNN: "The goose has gotten fat/ On caviar and fancy bars/ And subprime homes and broken homes/ Is this the life, the holy grail?/ It’s not enough that we succeed/ We still need others to fail" — O ganso engordou/ A base de caviar, bares chiques e ossos hipotecados/ E lares destruídos/ É essa é a vida ? O cálice sagrado?/ Não é o suficiente nós termos conseguido?/ Ainda precisamos que os outros falhem —. Como um filme ou um documentário musical da Netflix, Para que não haja dúvidas da entrega total da mensagem que está nela, a música inteira é legendada em português.
Na parte final, é emocionante sabermos que o Lado B de "The Dark Side of the Moon" é tocado na íntegra na atual turnê. "Money", "Us and Them", "Any Colour You Like" (com destaque para o duelo alternância dos solos de guitarra entre Kilminster e Wilson), "Brain Damage" e "Eclipse" soam como uma grande epopeia musical, em irretocável participação dessa banda com 10 integrantes que reproduz ipsis litteris um dos ‘discos entidade’ da cultura pop mundial. Pingos tímidos de chuva começam a pipocar timidamente pela abóbada da Arena. Será que novamente teremos o abreviamento do show?
Ainda há tempo... Depois de sermos sabotados pelo tempo ruim em 2018, finalmente Porto Alegre tem a sua versão de "Two Suns in the Sunset". Logo ouvimos o barulho de carros cruzando e o violão puxando o riff com a banda vindo atrás. A releitura ao vivo é mais lenta, reflexiva, semelhante ao vídeo lançado durante a pandemia. O audiovisual de animação no telão mostra uma viagem tranquila de um viajante solitário vista de cima, como se fosse filmada por um drone. Até que explosões nos lembram que o holocausto nuclear finalmente aconteceu. 'Two Suns' joga luz na despedida de Roger Waters do Pink Floyd, e num dos discos mais controversos da banda, "The Final Cut", mas certamente envelheceu com dignidade e continua a dar seu recado sobre os desvarios da humanidade. A chuva não veio e o baile segue.
Antes de cantar a ainda inédita "The Bar (Reprise)", o músico reverencia sua esposa, o irmão morto recentemente e Bob Dylan, fonte de inspiração para a nova canção. No tema, Roger revisita trechos de canções de Bob como "Sad Eyed Lady of the Lowlands", Lay Lady Lay" e "Blowin' in the Wind", além de "The Long and Winding Road", dos Beatles, pegando o mote das letras e reescrevendo-as como um hino pacifista. A banda toda se aproxima do piano, como se realmente estivesse tocando informalmente num ambiente de bar. Até que em "Outside the Wall", ele nos relembra do final da turnê de "The Wall" (é o mesmo desfecho), quando os músicos vão sendo apresentados um a um, saindo em fila única, ao estilo de New Orleans, como se estivem desfilando numa second line tocando instrumentos acústicos. Os saltimbancos dão adeus, embarcam na espaçonave e deixam o palco como se fossem passageiros de ônibus estelar... para nunca mais retornar?
A grande importância de testemunharmos algo que infelizmente será comum daqui pra frente — a despedida de gigantes da música — é principalmente perceber o carinho deles com o público. Assim como Roger Waters, tantos outros já poderiam estar fora de cena, possivelmente desfrutando da perigosa sensação de dever cumprido. De todo o modo, as novas gerações continuam redescobrindo sua obra e a reavivando. É surreal pensar que lá se vão 21 anos desde nosso primeiro encontro com o ex-Pink Floyd. Quem diria que depois daquele show de 2002, no Estádio Olímpico, em Porto Alegre, ainda veríamos ele novamente na mesma cidade, com dois shows no Estádio Beira-Rio (2012 e 2018) — e agora na Arena do Grêmio. Depois de duas décadas, enquanto o local do primeiro show está abandonado e em ruínas, o artista nos holofotes segue firme ainda derrubando muros — aos 80 anos!
Instantes depois do show, uma chuva torrencial deságua em Porto Alegre. Lavamos a alma.
Agradecimento especial a Paulo Correa/@nopalcors (fotos) Bia Fraga/@bonustrack.live e pelo suporte e convite.
Crédito: Lucas Alvarenga/ Alva Filmes. Foto: Paulo Corrêa/ No Palco |
Parabéns pela matéria! Conseguiste resumir muito bem a emoção que foi o show! Tive as mesmas sensações que tu. Eu também estava nos outros 3 (e ainda fui no da tournê DSOTM em Buenos Aires que ele não tocou aqui em POA e que também tinha som quadrafônico). E tive o prazer dessa vez de levar minha filha de 15 anos pra mostrar para ela que existe música com letra para nos fazer pensar.
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