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segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

SEUN KUTI & EGYPT 80 – PORTO ALEGRE, 1° DE DEZEMBRO DE 2023

| Foto: Rafael Cony |
| Por Lúcio Brancato Fotos: Rafael Cony |

Assim como tem shows onde o som bate no peito e percorre cada célula do nosso corpo, existem outros que transcendem o físico e nos colocam em hipnose multissensorial. Quando temos essas duas possibilidades num mesmo espetáculo, podemos afirmar ter vivido uma experiência musical completa.

O show de Seun Kuti & Egypt 80, no Bar Opinião, em Porto Alegre, fez exatamente isso: trouxe uma força de ancestralidade musical mágica e contemplativa, onde sentimos o magnetismo terrestre e a flutuação sideral num mesmo espaço de tempo. Neste caso, nenhum exagero substituirmos a palavra show por ritual, pois o que assistimos na noite de sexta-feira foi um culto.

| Foto: Rafael Cony |
Filho mais novo do nigeriano Fela Kuti (1938/1997), Seun carrega e expande o legado cultural, musical e político do pai. Apresenta na sua forma mais legítima o que ficou conhecido Afrobeat, um crossover de temperos ocidentais do jazz, funk, rock e soul, com elementos da música tradicional africana, como o percussivo do Iorubá e os sopros do Highlife. É uma música cíclica, de longo tempo de duração, onde a intensa repetição de melodias pode ser comparada aos mantras orientais. Uma sensação sonora circular e elástica que vai se expandindo harmonicamente entre metais, tambores, guitarra, baixo e cânticos. Acrescente a tudo isso o próprio corpo como instrumento. Cada movimento no palco coreografa de forma visual o entendimento universal do que está sendo dito. Aqui nem sempre é necessário um idioma para conectar palco e plateia, a expressão corporal traduz qualquer linguagem. É toda essa soma de forças que a gente sente durante o ritual.

| Foto: Rafael Cony |

Quando Fela Kuti morreu em 1997, aos 58 anos, Seun com apenas 14 anos assume, a pedido do próprio, a liderança da banda Egypt 80. De lá pra cá, não só preserva a força da música, como também assegura a continuidade do ativismo social e político tão importante e necessário implementado pelo pai. Fela lutou e denunciou com sua arte toda opressão do povo da Nigéria, que passou por sangrentas batalhas e governos ditatoriais. Apontou o dedo para o ocidente contra toda exploração humana e tantas tentativas coloniais de apagar a cultura continental africana.

| Foto: Rafael Cony |

O recado é dado já no começo da apresentação. A Egypt 80 surge no palco – melhor, no altar – trazendo na formação um naipe de metais com trompete, sax tenor e barítono, bateria, guitarra, duas vocalistas e também dançarinas, e no baixo Kunle Justice, membro remanescente da formação original da banda. Com um tema instrumental aquecem a entrada de Seun Kuti, que chega ao rito para somar com sua voz, seu sax alto e teclados, um dos hinos mais fortes e marcantes compostos por Fela: Coffin for Head of State. Um épico que passa dos 20min, gravado em resposta ao feroz ataque policial de 1977 que literalmente destruiu a República Kalacuta – espécie de comunidade alternativa criada por ele em Lagos – onde morava com a família, membros da banda e onde também ficava seu estúdio e acervo. Tudo destruído e incendiado, pessoas espancadas, presas e a sua mãe arremessada de uma janela do segundo andar. Funmilayo Ransome-Kuti morreu em abril de 1978 por complicações deste ato. A capa do disco com mesmo nome, lançado em 1981, traz imagens de quando Fela Kuti deixou caixão na frente do quartel general de Lagos protestando e apontando mais uma vez os culpados de um terror inimaginável.

| Foto: Rafael Cony |
É toda essa carga que o herdeiro Kuti carrega e preserva durante as duas horas de culto. Em determinado momento comenta que quando viaja pelo mundo sempre perguntam em cada país se fala a língua local: inglês, alemão, português, espanhol, etc... Sua resposta? “Basta uma língua colonizadora que já tive que aprender.” Assim como o pai é ele quem rege cada nuance e variação de toda a banda. Como um líder nato – ou um chief – conduz com o corpo a intensidade e elasticidade de todo o conjunto. A pontuação do naipe de sopros é de uma indescritível pulsação que altera nosso próprio compasso, a hipnótica linha melódica da guitarra nos coloca no meio de um cilindro e a dinâmica batida dos tambores balança qualquer espectador que se achava sem nenhum ritmo. 

| Foto: Rafael Cony |
Não importa a sua crença, fé, gosto musical ou escolha política. O que temos aqui é uma chance única de conexão com uma ancestralidade cultural e a mais verdadeira e coerente manifestação política, social e musical que você pode ter contato. Seun Kuti & Egypt 80 reconectam o ser humano com sua essência livre, sensorial e contemplativa. 
| Foto: Rafael Cony |

| Foto: Rafael Cony |

| Foto: Rafael Cony |

| Foto: Rafael Cony |

| Foto: Rafael Cony |

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