Translate

segunda-feira, 19 de maio de 2025

THE PRETENDERS - PORTO ALEGRE, 18 DE MAIO DE 2025

| Foto Laura Aldana |
| Por Márcio Grings Fotos Laura Aldana |

Final de domingo, uma chuva fina cai sobre Porto Alegre. A pé, cruzo a Avenida Osvaldo Aranha em direção ao Araújo Vianna, no caminho, um sujeito em situação de rua, deitado em frente a uma loja, levanta a cabeça do colchão e me pergunta qual é o show da noite. Ao ouvir a resposta, ele me grita enquanto atravesso a avenida:  

— Pede pra Chrissie tocar Don't Get Me Wrong, diz o sujeito tomado por uma euforia momentânea. Nunca menospreze o poder de um hit, penso. 

Foto: Laura Aldana
Quase uma década após a primeira vinda ao Rio Grande do Sul — quando fez o show de abertura para Phil Collins no Beira-Rio em 2018 — leia review AQUI — os Pretenders, banda criada por Chrissie Hynde, pisa pela quarta vez em solo brasileiro. Assim como naquele ano, ainda me sinto motivado em vê-los ao vivo. Afinal, a líder deles é um dos peixes grandes do rock. O atual status comprova que o grupo ainda está no jogo. A fila andou e o tempo foi generoso para os Pretenders. Na estrada desde 1978, Hynde acaba de celebrar 45 anos do autointitulado LP de estreia, lançado em janeiro de 1980. A atual gira, a Latin America Tour, já passou pela Cidade do México, Santiago, Montevidéu e Buenos Aires.  

Foto: Laura Aldana

Atualmente, como headliner, os Pretenders se apresentam em casas de espetáculo e teatros menores, um território onde Chrissie se sente à vontade: “Pessoalmente, não consigo curtir um show de três horas. Prefiro ver a banda de perto ao invés de assisti-la pelo telão. E da minha posição, como artista, gosto da possibilidade de poder enchergar os espectadores com meus próprios olhos”, disse em entrevista. “Poderíamos estar tocando em lugares maiores, ganhando mais dinheiro e conquistando mais prestígio. Contudo, não damos a mínima para essas coisas”, complementa. Quem a acompanha ao longo dos anos sabe, Chrissie não mede as palavras e,  além de seu ativismo em prol dos direitos dos animais e questões ambientais, a vocalista ainda vê no rock e no seu métier um instrumento de revolução ao modelo do Século XX. 

Foto: Laura Aldana

O fato é que os Pretenders estão na estrada com um dos melhores shows de rock da atualidade. O setlist mescla canções de nove dos doze álbuns lançados em quatro décadas e meia de atividade, e ainda promove um avant-première de “Kick ‘Em Where It Hurts – Live”, disco ao vivo que será lançado em junho. A formação que está no novo registro é a mesma que vem ao país. Além de Chrissie Hynde (voz, harmônica e guitarra), o grupo apresenta armas na Latin America Tour com James Walbourne (guitarrista e grande parceiro de Hynde nas composições), Dave Page (baixo) e Rob Walbourne (bateria). O trabalho de estúdio mais recente, "Relentless" (2023), é uma confirmação de que o grupo vive essa ótima fase, assim como os anteriores, "Hate For Sale" (2020) E "Alone" (2016).

Foto: Laura Aldana
O SHOW

Araújo Vianna, 3 mil pessoas saíram de casa num domingo de tempo instável para assistir a atual encarnação do grupo. 20h15, banda no palco, aos 73 anos, Chrissie Hynde mantém sua silhueta esguia, sombra nos olhos e o cabelo vermelho desgrenhado com estilo, os penduricalhos, calça jeans com botas de couro que sobem acima do joelho. A capa de "Freak Out" (1966) de Frank Zappa & The Mothers estampa a camiseta da cantora, um aceno à transgressão de um dos grandes guitarristas da história. A mistura de rock clássico, pós-punk, new wave e pop é a cartilha do som dos Pretenders, porém, nos últimos álbuns, há sínteses e subtrações dessa fórmula. A exemplo, nas canções recentes, encontramos ótimas letras, menos doçura e mais agressividade musical.  

Foto: Laura Aldana

Desse modo, inicialmente destituído de uma intenção pop, o show abre com uma das novas, "HATE FOR SALE", que diz: "Dinheiro no banco e cocaína no bolso/ Pornô o dia todo (...) Implante dentário/ Oh, ele vai à academia/ Peito depilado", é um retrato crítico, punk e turbulento do macho idiota propagado nas redes e nos dias de hoje. “Estou descartando um repertório só de hits. Eu nunca quis ir para essa direção, mas precisava me manter viva e pagar as contas. Se alguém quiser me assistir no futuro, vai ser punk rock/sem sucessos”, declarou Chrissie. O show tem esse contraste: um vai e vem entre o pop e o anti-pop. "TUFF ACCOUNTANT DADDY", mais uma do último álbum, mantém a corda esticada. James Walbourne arrepia no solo e mostra porque é o melhor guitarrista que já passou pelos Pretenders — "Queria cortar as mãos dele", disse Jeff Beck a Chrissie Hynde, ao visitá-la no back stage de uma apresentação do grupo em 2017. Hoje, Walbourne é parte do organismo vivo que o grupo se tornou. 

Foto: Laura Aldana

"KID" é a primeira que nos leva direto ao cânone do pop rock dos anos 1980. Ela ainda é uma das minhas cantoras de rock favoritas, dona de um contralto flutuante e sempre expressivo. A maneira como Chrissie ondula cada linha vocal – aquele trêmulo característico – é sublime. O timbre é inconfundível, e não há nenhuma subtração nessa entrega, apesar da líder da banda já ter passado dos 70 anos. "MY CITY OF GONE", de "Learning to Cry" (1984) foge da risca Greatest Hits. É um aceno a cidade natal de Hynde, como ela anuncia antes de tocá-la, conectando sua história com qualquer pessoa que tenha deixado para trás sua terra, emprestando aquela sensação de nostalgia e perda.

Foto: Laura Aldana

Antes de tocar "THE BUZZ", Chrissie avisa ao público que essa missiva tem endereço: é uma homenagem a Johnny Thunders, lendário guitarrista do New York Dolls. É também uma das melhores músicas do rock and roll feitas neste século, detentora das credenciais que forjaram o grupo. E mesmo que James Walbourne não tivesse nem nascido quando os Pretenders surgiram (ele veio ao mundo no que o primeiro LP foi lançado), sua guitarra tem o som dos Pretenders.

Dentro do preset do show, há passeios por vários estilos — "PRIVATE LIFE" (reggae), "BOOTS OF CHINESE PLASTIC" (psychobilly) e o rock dos anos 1950 repaginado com tintas oitentistas impregna "THUMBELINA". Não à toa, a capa do próximo álbum recicla uma iconografia clássica de Elvis (que o Clash chupou em London Calling), assim como Chrissie aparece em fotos de divulgação com uma imagem do Rei do Rock na sua camiseta. "TALK OF THE TOWN" é puro saudosismo, mas soa novinha em folha nessa noite no Araújo.  

Foto: Laura Aldana
"BACK ON A CHAIN GANG" é uma canção assinatura que até os hereges conhecem e se juntam ao coro. Os malditos celulares se elevam e a massa faz seus registros para as redes sociais. O bloco punk retorna com "DON'T CUT YOUR HAIR" e a ótima "JUNK WALK", retrato da atual cruzada ruidosa do grupo. Além disso, letras cheias de ironia como "LET THE SUN COMES IN" são a marca da safra mais recente (e bem aceita prlo público), com James destrinchando sua guitarra nas bases e solos. E Chrissie não se furta de deixar o seu menino dos olhos brilhar. Bem, se alguém veio até aqui para os hits (e o Pretenders tem alguns) "DON'T GET ME WRONG" satisfaz essa parcela do público no Araújo Vianna (e o meu camarada homeless a ouve na sua cabeça), pois temos aqui uma das músicas mais conhecidas do grupo no Brasil. Lá se erguem os celulares. 

Foto: Laura Aldana

"TIME THE AVENGER" bota fogo no parquinho e a releitura de "FOREVER YOUNG" empresta uma beleza magnânima e quase introspectiva. Se você não viu Chrissie cantando “I Shall Be Released” em 1994 no Bob Fest, corra até o YouTube, ela canta Dylan com propriedade e pode até errar a letra (a cantora gravou um álbum apenas com canções do bardo). Se "NIGHT IN MY VEINS" é um som moldado para as FMs dos anos 1990, "MIDDLE OF THE ROAD" (com direito ao coro atento do público) é uma pedra de quebrar vidraça, com Chrissie levantando o público com o solo de harmônica empapado de distorção e atitude, mote final para que a banda deixe o palco ovacionada pela plateia.  

O bis começa com dois clássicos, "MESSAGE OF LOVE" e a sempre bem-vinda releitura dos Kinks "STOP YOUR SOBBING", assim como “TATTOED LOVE BOYS", um antigo flerte com o pós-punk. No segundo bis, "I'LL STAND BY YOU", com Chrissie sem a guitarra e cantando como crooner, emociona e mostra o poder de uma canção pop que ultrapassou o tempo e segue batendo forte. Nem precisaríamos ouvir "PRECIOUS" e "MYSTERY ACHIEVEMENT", um último sopro de resistência ao lado mais indomado do quarteto no palco, mas esse final passa um recado: os Pretenders começam e terminam seu show ondulando na turbulência do rock, sempre com autenticidade e rebeldia. A cola de tudo está no pop e na força do hit, uma fórmula invocada pelos grandes. Afinal, nem todo mundo tem um sucesso pra chamar de seu. A apresentação no Araújo Vianna foi a mais longa até agora na Latin America Tour, com 24 músicas, prova de que esse encontro foi especial. 

Na saída, de volta pra casa, reencontro o sujeito em situação de rua e digo que os Pretenders tocaram “Don’t Get Me Wrong”. O pobre homem, escorado na parede e fumando um cigarro imaginário, abre um sorriso gigante. Nunca subestime o poder de um hit... Da Capital gaúcha  o grupo segue para Curitiba (20), Brasília (22) e São Paulo (24). Cobertura: Grings Tours | Quando o Som Bate no Peito. Review: Márcio Grings. Fotos: Laura Aldana. Agradecimento: Paulo Finatto (Opinião Produtora), credenciamento, suporte e assessoria.

quarta-feira, 7 de maio de 2025

SAXON — PORTO ALEGRE, 6 DE MAIO DE 2025

| Foto: Laura Aldana |
Review Márcio Grings Fotos Laura Aldana |

Há quatro décadas e meia, a banda inglesa que chegou a Porto Alegre nesta terça-feira (6) se tornou um dos pilares do som pesado. A atual turnê, a 9ª em terras brasileiras, com um novo show no Opinião — leia a resenha da passagem anterior (2019) AQUI —, é a última data no país da Hell, Fire & Steel Tour. Vindo de uma miniturnê pelo Japão, onde fez três apresentações (duas em Tóquio e uma em Osaka), no Brasil, antes da capital gaúcha, o Saxon ainda passou por São Paulo (3), como uma das atrações principais no festival Bangers Open Aire, e Belo Horizonte (4), onde se apresentou no Mister Rock.

Formado em Barnsley, South Yorkshire, na Inglaterra, há um símbolo indivisível na persona do grupo: o Saxon surgiu sincrônico ao nascimento do New Wave of British Heavy Metal, subgênero com termologia cunhada em 1979 por Alan Lewis, editor da revista britânica Sounds. O NWOBHM deu o play exatamente quando o punk entrou em declínio e, entre os principais expoentes dessa safra do som pesado, além do Saxon, bandas como Iron Maiden, Def Leppard e Motörhead também surfaram na mesma onda. No entanto, só em 1997 o Saxon visitaria o Brasil, com shows em Santos e São Paulo. Na época, como um quinteto reestruturado e já fora da crista da onda, a aterrissagem fazia sentido, pois não só por aqui — mas em toda a América do Sul — havia uma base sólida de fãs, forjada principalmente nos anos 1980, sedentos por esse encontro. Em tempo: até aquele período, todos os LPs do grupo ganharam edições no país via RGE e EMI, o que justifica sua popularidade.

Foto: Laura Aldana

Quase cinco décadas depois, muitos dos egressos no NWOBHM ainda permanecem no cenário, apesar de poucos terem seguido em frente com ousadia e inovação, não apenas regurgitando um espólio saudosista. Na linha do tempo, o erro estratégico do Saxon está fixado na segunda parte dos anos 1980 (a partir de 1985, principalmente) quando o grupo americanizou o som, amaciando a 'britanicidade' e o peso. Já o Iron Maiden, mais bem orientado pelos seus managers, parece nunca ter superdimensionado o mercado norte-americano e, mesmo assim, se tornou grande nos dois lados do Atlântico, sem abandonar seus propósitos, permanecendo tão britânico quanto o chá das cinco.

Por outro lado, hoje, nos trabalhos deste século, é fácil identificarmos desmedidas repetições de uma fórmula já esgotada na banda de Bruce Dickinson e Steve Harris. Quanto ao Saxon, mesmo tendo diminuído de estatura frente ao Iron Maiden (nos anos 1980, por um breve período, ambos igualaram forças), salvo algum equívoco ou outro, o grupo liderado pelo vocalista Biff Byford, segue conquistando crítica e renovando seu público, repaginando a ordem das coisas e cravando — ano após ano — ótimos discos, como é o caso do elogiado "Hell, Fire and Damnation" (2024).

Doug Scarrat. Foto: Laura Aldana
A FORMAÇÃO

Para entendermos a atual composição que chega até Porto Alegre e a troca de cadeiras em relação à era jurássica, inicialmente comecemos por Nibbs Carter (59 anos), na banda desde 1989. Ele começou sua história no Saxon gravando o baixo no álbum ao vivo "Rock 'n' Roll Gypsies", substituindo um integrante da formação original, Steve Dawson. Antes disso, em 1982, Nigel Glockler (72 anos) ocupou a lacuna deixada por Pete Gill, homem das baquetas nos quatro primeiros LPs. Nigel entrou quebrando tudo no álbum "The Eagle Has Landed" (1982), o mais poderoso registro ao vivo do grupo em qualquer década. Deste modo, juntando-se ao vocalista, o velho general Biff Byford (74 anos), comandante geral das operações, eis o trio que segura a bronca há mais tempo.

Nibbs Carter. Foto: Laura Aldana

Na década seguinte, em 1997, Doug Scarrat (65 anos) substituiu Graham Oliver e foi um dos guitarristas que participou do primeiro tour pelo país. E, por último, quando Paul Quinn decidiu pendurar as chuteiras em março de 2023 (ele esteve em Porto Alegre em 2019), o Saxon anunciou o substituto, Brian Tatler (64 anos), presença legítima no NWOBHM, já que o músico fez história como guitarrista do Diamond Head.

Laura Guldemond, vocalista do Burning Witches. Foto: Laura Aldana
ABERTURA: URDZA E BURNING WITCHES

Antes do Saxon, duas ótimas atrações aqueceram o público. Direto de Santos, a Urdza, que acaba de lançar o seu álbum de estreia, "A War With Myself” (2024), fez um show curto e encaixado. A banda paulista está pronta para alçar voos maiores, guardem esse nome.  Logo depois, a grande surpresa (pelo menos para mim) da noite se deu com a Burning Witches. Essa banda de garotas vinda da Suíça, com cinco álbuns de estúdio lançados, aposta no power e heavy metal dos anos 1980, mas também traz sangue novo e originalidade ao gênero, com destaque para a vocalista Laura Guldemond, uma cantora e performer de mão cheia. Completam o time Romana Kalkuhl (guitarra e voz de apoio), Courtney Cox (guitarra), Jeanine Grob (baixo) e Lala Frischknecht (bateria e voz de apoio). Músicas como "Unleash the Beat", "Dance With the Devil", "The Spell of Skulls" e "Lucid Nightmare" são cartões de visita que dão o tom do calibre das meninas. Voltem logo, já estamos com saudades!

E COMO VEM A ATRAÇÃO PRINCIPAL?

Dividido em duas partes distintas, a Hell, Fire & Steel Tour já passou por 11 países em três continentes, pulverizando uma fusão de novas músicas e sons 'da antiga', além da execução na íntegra de "Wheels of Steel" (1980), álbum que colocou o Saxon na primeira divisão do metal nos primeiros dias de sua década mais fértil. A apresentação em Porto Alegre é a 30ª desse ano, numa agenda que se encerra em novembro. Até o final de 2025, o Saxon fará no mínimo mais 30 shows, o que posiciona a passagem pela capital gaúcha como o meio do caminho da atual turnê.

Nigel Glockler. Foto: Laura Aldana
O SHOW

Em primeiro lugar, parabéns à Opinião Produtora por novamente oportunizar ao público local a assistir aos ingleses ao vivo. Particularmente, se o Saxon virou uma banda de nicho, se não lota mais estádios (não estamos falando de festivais, onde o grupo tem cadeira cativa nos line-ups da Europa), o fato de se apresentar em lugares menores, de poder reunir mais de 1000 head bangers apaixonados numa casa de espetáculo com o peso do Opinião, felizardos de nós que aqui estamos.

Após a introdução com "PROFECY”, quando ouvimos em off a voz marcante do ator britânico Brian Blessed, o Vultan em "Flash Gord" (1980) e Boss Nass em "Star Wars: Episódio I - A Ameaça Fantasma" (1999), proferindo ditames de antigas profecias e da eterna disputa entre o bem e o mal, um a um, os membros do grupo se posicionam e são ovacionados nos segundos iniciais. O pontapé com a banda tête-à-tête se dá com “HELL, FIRE AND DAMNATION”, um balaço do álbum mais recente. O padrão dos shows atuais é alto, muitas bandas tombaram pelo caminho ou soam como arremedos de si próprias, mas o Saxon permanece em pé, sólido, ainda se conectando com o público no intercâmbio e paixão pelo emblema do metal. Prova disso é ver a alegria de Biff ao perceber que o refrão de "Hell, Fire and Damnation" já está na boca do povo. O ataque das guitarras de Scarratt e Tatler (um volume ensurdecedor), os lanceiros do time, abrem caminho para Biff brandir a espada saxônica. "POWER AND THE GLORY" impressiona, continua candente e ainda mais viva no palco. Já podemos sentir que Tatler está em casa no Saxon, como se tocasse no grupo desde sempre. Antes de "BACKS TO THE WALL", tema do álbum de abertura do primeiro LP do grupo, Biff brinca dizendo que muitos na plateia certamente não tinham nascido em 1979. E esse é um bom exemplo de como as velhas canções soam novas em folha, imantadas por uma energia incrível (tocada mais rápida) e com um arranjo que deixa a gravação original no chinelo. 

Brian Tatler. Foto: Laura Aldana

As novas músicas trazem uma mistura de metal clássico com uma atmosfera mais moderna, como na ótima “MADAME GUILLOTINE”. "HEAVY METAL THUNDER" não apenas tem epítome de hino, como de fato é, assim como é incrível ver a banda em ação com a pegada dos velhos tempos intacta. Sem respiro entre uma música e outra, o sempre empolgado Carter dispara o baixo pulsante de “DALLAS 1 PM”, relato da morte de John Kennedy, que inclui a transmissão de rádio no meio da música. Hit. Também na agenda gaúcha temos um dos clássicos absolutos, "STRONG ARM OF THE LAW", uma amostra de que o Saxon intercala temáticas, podendo falar de truculência policial (é uma das preferidas dos fãs), grudada em "1066", mais uma das boas canções da nova safra, um épico histriônico que trespassa a narrativa de uma batalha saxônica. "THE EAGLE HAS LANDED" é a música que fecha um dos melhores álbuns do Saxon (e essa primeira parte do show), "Power and the Glory" (1983), esteve ausente no setlist de 2019, traz ares reflexivos intercalando dedilhados e riffs poderosos. Tatler e Scarret novamente mostram sintonia, tanto na divisão dos solos quanto na dobra dos riffs, honrando a tradição guitarrística do grupo. Se você gosta de som de guitarra pesada, esse é o seu show!

Biff Byford. Foto: Laura Aldana
WHEELS OF STEEL, O ÁLBUM

Na pole position, entre os álbuns mais representativos do Saxon — aqui está forjado o seu DNA —, o LP lançado em 3 de abril de 1980 colocou o grupo na primeira divisão e na história do heavy metal. Enfurnados em um refúgio rural no País de Gales, uma série de canções foram escritas, duas delas definiram tudo a partir dali: "Wheels of Steel" e "747 (Strangers in the Night)". O disco pega as guitarras de Graham Oliver e Pete Gill (dupla de músicos da formação clássica) e as coloca na linha de frente. Quando ouvimos o álbum, percebemos que elas circulam pelo lado esquerdo e direito das caixas de som, muitas vezes dobradas, até mesmo centralizadas, potencializando a sensação cêntrica dessa escolha. No show  a sensação é semelhante. As músicas são rápidas e as canções trazem letras sobre dirigir em alta velocidade ou do tipo "não deixem que os desgraçados te derrubem". Com isso, "Wheels of Steel" não foi apenas a origem do sucesso do Saxon, aqui o mundo teve o sinal de alerta de que a Grã-Bretanha estava pronta para lançar um ataque sem precedentes, pois, como sabemos, o heavy metal se tornaria um dos gêneros dominantes daquela década.

Assim, a peça central do set da atual turnê traz a íntegra de "Wheel's of Steel", uma das marcas dessa nova gira.

Foto: Laura Aldana
WHEELS OF STEEL, AO VIVO NO OPINIÃO

Antes de tocar o álbum na ordem em que o conhecemos, Biff faz um longo discurso relembrando o público de como era o mundo em 1980: "sem celulares, CDs e streaming. Com LPs, fitas cassete e revistas de música", um discurso saudosista, mas também parece um relato de uma banda sobrevivente. "Não vivemos no passado. Trazemos, sim, o passado de volta quando tocamos ao vivo, mas não vivemos lá", disse Biff a Martin Popoff, um dos biógrafos do grupo. Essa sensação (sobre um passado pulsante) se impõe no público quando o som das motocicletas introduz “MOTORCYCLE MAN”, testemunho sobre o prazer de pilotar uma máquina potente. Para muitos, é o início de uma viagem pela estrada da memória, mas também é possível ver fãs mais jovens curtindo. Poucas bandas congregam essa grandeza, ter músicas em seu portfólio que conectam gerações. É o passado que está de volta. E o séquito do Saxon não se importa de continuar morando por lá. Biff simula estar segurando no guidão de uma moto e acelera a adrenalina do público.

Foto: Laura Aldana

As guitarras ensopadas de phazer em "STAND UP AND BE COUNTED", uma música que versa sobre a busca por um lugar no mundo, dá seguimento na escalada do álbum, na exata sequência do LP. "747 (STRANGERS IN THE NIGHT)" é um dos Montes Rushmore da discografia do grupo (minha preferida, pop e pesada). O tema se baseia num blecaute que aconteceu em Nova York, com pessoas presas no metrô e nos elevadores, quando até as luzes da pista do aeroporto J.F. Kennedy se apagaram. Ainda hoje reverbera a lenda de que nove meses após o apagão (ocorrido em 1965), houve um baby boom. Na letra, Biff até menciona um voo real — o 911, da Scandinavian Airlines — envolvido no apagão, que obteve êxito no seu pouso na Big Apple graças à lua cheia. História digna de um filme... e de uma boa música. Romantizada por Biff, trechos de tudo isso estão na letra, pegando o mote de estranhos se esbarrando à noite durante o blecaute histórico. Sempre gostei do início de '747', que começa pelo solo, uma sensação de que pegamos o bonde andando, com o riff das guitarras atingindo o ouvinte de surpresa. O volume do show e a intensidade do público chega a um dos seus ápices.

Foto: Laura Aldana

Bem, talvez ainda não. A faixa-título, “WHEELS OF STEEL”, crisol alquímico e síntese dos propósitos do Saxon, tem como desculpa temática falar sobre uma competição automobilística e, com isso, promove uma das catarses previsíveis de um show do grupo: o público se une a Biff em uníssono durante o refrão. É também o momento em que o vocalista pega seu celular e filma a plateia ondulando no embalo da cozinha de Nigel e Nibbs (veja AQUI). Virando o lado do LP, praticamente sem brechas entre uma e outra execução, "FREEWAY MAD", "SEE THE LIGHT SHINING" e “STREET FIGHTING MAN” soam como rescaldo após o tufão de um megahit, ponte eficiente e borda áspera que nos leva até "SUZIE HOLD ON", um riff de baixo que atropela tudo, mas que empresta ares de balada marmorizados na voz melodiosa de Biff. Carter toca seu baixo empoleirado no praticável da bateria (ele simplesmente não para um segundo). O tufão volta a ondular em "MACHINE GUN", empurradas pelo efeito do tremolo com a alavanca da guitarra de Scarrat que leva parte do público no Opinião a sacudir a cabeça até quase quebrar o pescoço (eu não tenho a mínima condição de fazer algo parecido). Os sons da explosão ao final da música passam o recado de que tudo pode ter acabado nessa noite... Mas, a audiência clama pela volta do grupo.

Foto: Laura Aldana

Em 2019, poucos meses após a sua primeira vinda ao RS, Biff passou por uma cirurgia de revascularização, o que causou preocupação nos fãs. Seis anos depois, em nenhum momento do show identifico evidências de fragilidade no velho general. O Biff bufão, com a barriga proeminente de um sábio ancião, que joga água no público e ainda agita a massa como poucos (e canta muito, não esqueçam disso!), mostra porque é uma lenda viva. A energia física e a potência de sua voz impressionam. E, após a jogada ensaiada dos apelos do público para que o Saxon retorne ao palco (e a audiência realmente fez barulho), o grupo monta sua despedida com uma quadra de ases — primeiro, a mais pedida da noite, “CRUSADER”; o hino dos hinos; “DENIM & LEATHER” foi cantada em uníssono com o baterista Nigel Glockler arrepiando; “AND THE BANDS PLAYED ON”, outro alvoroço, é uma música símbolo de identificação das letras que falam do homem comum e faz um retrato da simbiose com o público nos shows, e “PRINCESS OF THE NIGHT”, fecha o serviço nessa sarrafada de clássicos do songbook metal. Parecia que o show estava recomeçando, vide a integração entre a banda e seus fãs e, com ambos pulsando em alta rotação, mas assim se despediu do Brasil a Hell, Fire & Steel Tour. De Porto Alegre o Saxon segue para Buenos Aires (8), Montevideo (9) e Santiago (11).

O Saxon é uma banda que se recusa à acomodação, embora obviamente — como dezenas de outros confrades — ainda dependa dos clássicos para manter os fãs envolvidos. Contudo, passados quase cinquenta anos, ela se reaviva, ano após ano, e o show que acabo de assistir é a prova de que, do ponto de vista de uma apresentação, o grupo inglês consegue entregar material novo em nível similar, além de reverenciar um passado glorioso.

Cobertura: Grings Tours | Quando o Som Bate no Peito. Review: Márcio Grings. Fotos: Laura Aldana. Agradecimento: Paulo Finatto (Opinião Produtora), credenciamento, suporte e assessoria.

Foto: Laura Aldana
Foto: Laura Aldana


quinta-feira, 10 de abril de 2025

URIAH HEEP — PORTO ALEGRE, 10 DE ABRIL DE 2025

| Uriah Heep no Opinião. Foto: Rafael Cony |
| Review Márcio Grings Fotos Rafael Cony |

O Uriah Heep é o principal algoz num dos clássicos da literatura inglesa, o romance "David Copperfield" (1850), escrito por Charles Dickens (1812-1870). Ele é um puxa-saco mentiroso e enganador, se faz de humilde e amigável, para roubar tudo o que pode de cada um que cruza na sua frente. A pergunta é: o que motivaria alguém a buscar inspiração num canalha desprezível como esse? Segundo o guitarrista Mick Box, o nome de Dickens estava em todos os lugares no início do ano de 1970, pois, naqueles dias, os ingleses recordavam o centenário de sua morte. Assim, graças a efeméride e, envoltos na gravação do álbum de estreia, "Very 'Eavy... Very 'Humble", o Spice (como a banda era chamada), por sugestão de seu vocalista à época, David Byron, muda o nome para Uriah Heep.

Foto: Rafael Cony

De todo modo, como grupo musical, o Uriah Heep nunca foi desprezível. Longe disso, por conseguinte, ao raiar do novo século, muitas vezes é injustamente esquecido pela literatura do rock. Pioneiros em fundir o hard rock com o progressivo, entre outras infusões, a banda nunca alcançou o mesmo destaque de alguns coirmãos como Led Zeppelin, Deep Purple e Black Sabbath. Por outro lado, a exemplo de sua influência no cenário posterior, grupos como Iron Maiden —, que plagiou descaradamente o riff de "I Hear Voices" em "The Red And The Black", de "The Book of Souls (2015) — e, o Blind Guardian, que regravou "The Wizard", entre tantas outras bandas e artistas catequizadas pela sua influência, denotam a relevância da obra construída pelo Heep. Com mais de 40 milhões de álbuns vendidos ao redor do mundo, alguns LPs caíram na minha mão, tornando seus discos — principalmente a fase com David Byron — ligação direta com minha memória afetiva, tornando-a uma das bandas preferidas da minha adolescência.

E, como fã, até mesmo trabalhos contestados pela crítica, como "Conquest" (1980) — uma das minhas capas favoritas —, um álbum que ouvi centenas de vezes, décadas depois, certamente foi mal-entendido, assim como outras obras distintas. Um destaque está no bem-sucedido "Abominog" (1982) — mesmo com uma capa tenebrosa —, alinhado até a medula com o pop metal daquele período, trabalho que abriu às portas para uma nova geração de fãs.

Foto: Rafael Cony

Um possível fator responsável por alguma descrença no valor artístico do espólio da banda talvez esteja na contínua rotação de integrantes. Ao longo de 55 anos, mais de 20 músicos já passaram pelas fileiras do grupo, entre eles, membros da formação clássica — David Byron, Ken Hensley, Gary Thain e Lee Kerslake, além de nomes como Trevor Bolder, John Lawton e até Nigel Olson (baterista de Elton John, e único vivo entre todos os citados). Toda essa atividade produziu 25 álbuns de estúdio, uma trajetória longeva e repleta de camadas. Vale frisar: a presente formação que chega até Porto Alegre nesta quinta-feira (10) gravou os seis últimos álbuns de estúdio, tornando-se o mais estável de todos os quintetos em qualquer época.

Afora a necessidade de rótulo ou classificação, a música criada nessas mais de cinco décadas — principalmente nos anos 1970 — foi definidora para incrustar o Uriah Heep como patrimônio imaterial do rock. Aí está o ponto: a atual turnê — The Magician’s Farewell — reproduz com fidelidade o DNA dos melhores momentos dessa linhagem, com foco no período mais reverenciado e no espírito desse tempo, trazendo até nós uma apresentação fidedigna aos propósitos invocados. Assim, no palco do Opinião temos: o sobrevivente Mick Box (77 anos, guitarra e vocais de apoio, único membro da formação original e presente desde sua criação); Bernie Shaw (68 anos, voz, há 39 anos vocalista do Heep); Phil Lanzon (75 anos, um dos principais compositores do quinteto, teclados e vocais de apoio); Dave Rimmer (56 anos, baixo e vocais de apoio, substituto de Trevor Bolder, morto em 2013) e Russell Gilbrook (60 anos, bateria). 

Foto: Rafael Cony
Depois de apresentações em três capitais da América do Sul — Montevideo (4), Buenos Aires (5), Santiago (6), pela sétima vez os ingleses desembarcam no Brasil (o debute foi em 1989, no tour do álbum Raging Silence). Antes da capital gaúcha, o Rio de Janeiro (9) recebeu o primeiro show do atual tour. Porto Alegre já esteve no caminho do grupo outras duas vezes, 2014, no Teatro do Bourbon Country, e 2004, no mesmo local do evento de hoje, o Opinião.

________________________________________

Foto: Rafael Cony
O SHOW

Antes de tudo, é necessário lembrar que pós Enchente de 2024, o Rio Grande do Sul novamente vive uma certa normalidade e, desse modo, os show internacionais voltam a circular por aqui. O Aeroporto Salgado Filho, por exemplo, ficou quase seis meses sem receber voos, devido aos danos causados pela catástrofe climática, como esquecer esse limbo? Com isso, celebremos o dia de hoje. 

Com um público em torno de 1000 pessoas (informação da assessoria do Opinião), a terceira apresentação do Uriah Heep na capital gaúcha começa com "Grazed By Heaven", de "Living the Dream" (2019), um F5 no setlist, atualizando o público com um fruto da safra mais recente. Gilbrook bate forte e, na companhia de Rimmer, formam uma cozinha pujante que conduz a rodada inicial num ritmo alucinante. É perceptível, Bernie Shaw nasceu para cantar no Heep. Ele tem o estilo, uma voz que representa 'todas as vozes do espólio' e capricha nos acessórios, vide o coldre preso a perna direita onde guarda o microfone. "Save Me Tonight", faixa de abertura do elogiado "Chaos and Colour" (2023), retrata o alinhamento do quinteto e define o tom pesado dos primeiros minutos. Logo depois, "Overload", de "Wake the Sleeper" (2008), mantém a tocha acesa na senda das produções mais recentes, prova de que eles continuam criando e apostando no aqui e agora. Com um permanente sorriso no rosto, Mick Box está em ótima forma, enquanto Phil Lanzon, com poses e gestos de um cientista maluco, há quase quatro décadas compõe e toca as teclas no grupo, se debruçando sobre seu instrumento ao estilo dos grandes musicistas do gênero (ele também é escritor, com dois livros lançados).

Foto: Rafael Cony

A comparação com o Deep Purple foi algo que sempre os assombrou, por mais que o Uriah Heep tenha pegado essa bola redonda, mas, na linha de passe, chutou a pelota com um efeito diferente. É o que penso quando ouço "Shadows of Grief", de "Look At Yourself" (1971), onde Lanzon brilha com sua técnica e atitude, batendo na liturgia do prog-rock e na dramaticidade dos teclados, uma volta aos velhos tempos. O sarrafo segue nas alturas em "Stealing", narrativa da vida pregressa de um fora-da-lei em fuga (é uma das minhas letras favoritas). Pinçada de "Sweet Freedom" (1973), essa bate forte nos detratores que julgam o Heep como um Purple de segunda linha, pois, lançado à frente de "Burn" (1974), clássico da era MK3, o Heep mostra que o trânsito rock and soul já corria das veias do grupo antes de Glenn Hughes adicionar esse mesmo tempero no caldeirão púrpura. O público esquenta e canta em uníssono os vocalizes: "uh, uh, uh, uh, ah, ah, ahhhh".  

Foto: Rafael Cony

"Hurricane", na linha do metal melódico, mais uma de "Chaos & Colour", escrita por Gilbrook, é um momento de baixa no set, pois há dezenas de temas superiores na discografia deles, inclusive na história recente. Qualquer equívoco é soterrado quando voltamos para a Terra Média através da magia evocada pelo dedilhado no violão de aço em "The Wizard". Antes do primeiro acorde ser disparado, Bernie aponta para seu colega e diz: "Ladies and gentlemen, my best friend, Mick Box". O sorridente vocalista, com um dos braços em volta dos ombros do guitarrista (vocês não acham que ele está a lata do Jerry Garcia, do Grateful Dead?), apregoa a mítica do mestre eremita, o vagabundo ancião contador de histórias. Poderia ser o mago Gandalf, de "O Senhor dos Anéis", mas essa criatura da letra tem uma mitologia própria, o que a torna ainda mais original. É uma das canções assinatura do Heep. Tocada sem a guitarra — no trecho mais pesado da música — como ouvimos no álbum "Demons and Wizards" (1972), a versão do Opinião faz jus ao espírito acústico das baladas progressivas.  

Foto: Rafael Cony

"Sweet Lorraine" possui um blend característico: mistura uma melodia pop/grudenta com a estranheza do sintetizador Moog, instrumento 'riffador' e solista — sacada de mestre do saudoso Ken Hensley, um dos mentores intelectuais da primeira encarnação —, escolha responsável por criar uma identidade singular ao quinteto. Pena que o teclado estava num volume mais baixo, fator que nos furta de absorver ao vivo o principal holograma desse tema. Desejaria ouvir na sequência "Return to Fantasy", faixa título do álbum de 1975, idêntica a linhagem de 'Lorraine' — com seus 'teclados filme de terror' — mas não foi o que aconteceu. Nada é perfeito.

Antes de tocar "Free 'n' Easy", de "Innocent Victim" (1977), o único aparte no set advindo do espólio de John Lawton, Bernie faz um discurso exaltando o rock feito nos anos 1970. E quem discordaria dele nessa noite de outono em Porto Alegre? Tocada mais rápida, é chumbo grosso disparado em alta octanagem, diferente da versão original. Repaginada para a turnê, vejo o head banging rolando bem em frente ao palco. No centro de tudo, Mick Box é pura pose e alegria. 

Foto: Rafael Cony

A ópera rock "The Magician's Birthday" traz o argumento que motivou essa turnê de aniversário e de uma suposta despedida das grandes giras. Estamos falando do indiscutível ápice da noite. Retorno ao espírito dos anos 1970, ao longo de seus mais de 10 minutos, a guitarra avança em pista livre como um automóvel potente em BR de asfalto bom. Foi minha porta de entrada com o Uriah Heep, o ano era 1985, e ouvi ela pela primeira vez por volta da 1h da manhã numa noite de inverno durante um programa de rádio, o Cultura Rock, da Cultura FM (Santa Maria/ RS). Gravada numa fita cassete, esse registro me abasteceu por um tempo. Trata-se de um blues rock, mas também há um flerte com o progressivo. Na gravação original, o tom satírico no backing do refrão: “Happy birthday to you/ Happy birthday to magician/ Happy birthday to you", a voz de apoio, lembra o yodel e os scats de Thijs van Leer em “Hocus Pocus”, clássico do grupo holandês Focus, gravado meses antes do álbum do Heep. Ao vivo, Bernie e Phil reconfiguram as vozes nesse trecho sem perder o brilho original.  

Foto: Rafael Cony

Á medida em que a música avança, entre vais e vens e sobreposições, a fantasmagoria dos teclados soam sinistras. Esse é o momento máximo de Mick no show, no longo solo, acompanhado apenas de Gilbrook, com Bernie, Dave e Phil ganhando um refresco. O guitarrista se diverte, abusa dos maneirismos, afunda o pé no pedal wah-wah e brinca com a plateia. Ele abusa dos tiques e maneirismos, toca como se manipulasse poções mágicas sobre o braço da guitarra, abendiçoando o público feito uma figura budística. Após o zigue-zague no longo trecho instrumental, as pontas são amarradas quando o baixo e o teclado retornam ao palco, com Bernie em estado de graça proclamando o amor como tábua de salvação. É um épico, "The Magician's Birthday" reverbera sua curvatura, propósitos e estilo até hoje. 

O sentimento de poder no riff de Mick Box continua evidente em "Gypsy", precursora do heavy metal (o Iron Maiden nasceu de músicas como essa), relato de um jovem apaixonado por uma cigana, um dos destaques de "Very 'Eavy Very 'Umble" (1970). No solo de Phil Lanzon, uma assombrosa tempestade dos teclados trovoa como um pesadelo. Em dado momento, Dave e Mick se escondem, cada um em laterais opostas do palco e, quando voltam à linha de frente, tocam os punhos de leve numa espécie de 'brodagem supergênios ativar'. Bernie, no centro da canção, entrega a alma para o público e passa aquela sensação de que ninguém cumpriria essa missão como ele. O Uriah Heep não brinca em serviço, até jogada ensaiada faz parte do mise-en-scène deles.

Foto: Rafael Cony

"July Morning" é grandiosa e insólita. Além de clássico absoluto, joia reluzente no álbum "Look At Yorself" e no "Uriah Heep Live" (1973), o tema ainda inspirou um ato de resistência dos búlgaros contra os soviéticos durante os anos 1980, e acabou dando o pontapé inicial num festival chamado Julaya. Todos os anos, no final de junho, pessoas de toda a Bulgária viajam para a costa do Mar Negro para acompanhar o nascimento do sol no primeiro dia de julho. Daí, envoltos num tardio espírito hippie, muitos desses viajantes acampam em barracas, se juntam em volta de fogueiras e acredite: "July Morning" é a principal trilha-sonora do encontro, cantada em coro como hino oficial dessa celebração. A transcendência da música escrita por David Byron e Ken Hensley, exalta a esperança do amor como símbolo da felicidade, da esperança de um recomeço e a consequente libertação dessa conquista. É vísivel que aqui temos outro pico da noite. A banda sai do palco, se despede, mas todos sabemos que haverá um ato final, é o que o público suplica. 

Gilbrook é o primeiro a voltar, começa fazendo uma marcação do bumbo e entrega o jogo do que vem pela frente. Tematicamente, "Sunrise" se une ao tema anterior, é uma das peças-chave para entender o som da banda inglesa: camada de vozes, órgão hammond saltando faíscas e as dinâmicas da guitarra. No início, a voz de Bernie soa cristalina, para logo depois sermos soterrados pelo volume ensurdecedor da banda, um foguete que nos leva até a apoteose de um show de rock and roll. 

Foto: Rafael Cony

O círculo se fecha em "Easy Livin'", que há exatos 50 anos, fez parte da trilha-sonora de "Um dia de Cão" (1975), filme estrelado por Al Pacino, ganhador do Oscar de Melhor Roteiro Original (ela pode ser ouvida bem no começo do filme). A inclusão comprova de como o Uriah Heep estava na crista da onda naquela década. A força poética desse tour de force é o desfecho dos sonhos para nos despedirmos do show. Afinal, frente as agruras da existência, quem não deseja uma vida descomplicada ao lado da pessoa amada?

Em uma de suas falas, Bernie Shaw deu a entender que a banda está compondo músicas para um novo álbum, sem data de lançamento, para alegria dos fãs ainda interessados em material inédito. O fato é que parte da primeira fila incluía alguns garotos com camisetas da banda (de todas as fases), cantando inclusive os temas gravados nos dois últimos discos. Será que ainda há esperança de o Uriah Heep continuar por aí? 

Foto: Rafael Cony

Depois de Porto Alegre, também poderão se despedir do grupo inglês os fãs de São Paulo (11), Curitiba (12) e Belo Horizonte (13). Em julho, The Magician's Farewell segue seu curso pela Europa, com shows agendados até o final do ano.

Cobertura: Grings Tours | Quando o Som Bate no Peito. Review: Márcio Grings. Fotos: Rafael Cony. Agradecimento: Paulo Finatto (Opinião Produtora) pelo credenciamento, suporte e assessoria.

Foto: Rafael Cony

segunda-feira, 23 de setembro de 2024

JOSS STONE — BELO HORIZONTE, 22 DE SEMBRO DE 2024

Foto: Romero Carvalho
| Por Romero Carvalho |

Não é segredo para quem acompanha o nosso podcast “Quando o Som Bate no Peito”, que voltará no próximo mês, a minha admiração imensa pela discografia e obra da cantora inglesa Joss Stone. Em um dos nossos episódios, falei da minha redescoberta de seus álbuns e de como ela produziu em 20 anos uma carreira sólida e artisticamente interessante. A cantora, que fez sua estreia em 2003, aos 16 anos, amadrinhada pela lenda do soul/funk Betty Wright, celebra em sua turnê Ellipsis estas duas décadas de estrada, em que teve até coragem para romper com grandes gravadoras e trilhar um caminho independente. Neste momento, ela está no Brasil e, aproveitando a vinda para o Rock in Rio, fez shows em Ribeirão Preto, Belo Horizonte e fará em São Paulo.

E preciso dizer: assisti-la em Belo Horizonte, num BeFly Hall bem menos cheio do que deveria, foi um arrebatamento musical. Que Joss Stone canta muito, compõe bem e escolhe com precisão o repertório são coisas bem celebradas. Mas sua presença no palco é avassaladora. Talento, carisma, simpatia, beleza, charme e conexão pessoal com a plateia em níveis estratosféricos. Posso dizer com segurança que é uma das maiores presenças de palco que já presenciei em minha vida. Se não for a maior. Soma-se a isso uma banda espetacular, cheia, com metais, backing vocalistas e tudo o que pede um bom show de funk/soul raiz. E raiz é a palavra pro show, que não tinha telão, cenário, nenhuma base pré-gravada ou clique. Era só música! 

Abrindo com seu grande sucesso de estreia, a funky Super Duper Love, Joss desceu do palco, foi para o meio do público e fez todos saírem de suas cadeiras. Avisou que era uma noite para se divertirem e dançarem à vontade. O local veio abaixo e ela já tinha total domínio da plateia. Quando os seguranças do espaço tentaram obrigar as pessoas a se sentarem novamente, a britânica interveio e exigiu o desobedecimento. Em pouco mais de 1h30, o baile seguiu com funks pesadíssimos, baladas soul no melhor estilo Al Green, funk-rock, reggae – ritmo muito presente no ótimo álbum “Water for your soul” – e seleções de clássicos da disco music, gênero que parece agradar os pequenos filhos da cantora.

Com muita generosidade, Joss Stone deixa todos os seus músicos brilharem no palco, incluindo números solo para cada backing vocal. Atendeu pedidos do público em cartazes que sugeriam canções e fez com que cada um próximo a ela tivesse uma conexão pessoal com a diva acessível. Ao final, um gesto já clássico em seus espetáculos, ela distribui girassóis para a plateia e arremessou um para mim. Se no site dela vende réplicas de cera dos girassóis arremessados, penso que vou emoldurar a minha linda flor real.

Joss Stone tem sido chamada de última diva branca do soul. Como no clássico do Tolkien, quando os elfos anunciam que não é mais o tempo deles, quase semi-deuses, na Terra Média, parece que também não estamos mais na era das divas. Mas enquanto trovejar a voz de Joss, o ritual de arrebatamento por esta divindade musical está garantido para quem tiver a oportunidade de estar em seus bailes. O girassol floresce. 

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024

OMAR COLEMAN — PORTO ALEGRE, 22 DE FEVEREIRO DE 2024

Foto: Zé Carlos de Andrade
| Por Márcio Grings Fotos: Zé Carlos de Andrade |

Cidade mais populosa do estado de Illinois, nos Estados Unidos, Chicago é também uma das mecas do blues, jazz e da música negra norte-americana. Quando o blues tomou conta das ruas da cidade em meados do Século XX,  em busca de um cenário repleto de oportunidades artísticas, músicos locais encorajaram os imigrantes sulistas a trocar o violão por guitarras elétricas. Completando o caldo, as letras das canções começaram a refletir a vida dos afro-americanos durante aquele período, transformando essa cultura em patrimônio internacional da negritude. Assim o blues sofreria uma de suas grandes transformações, forjando dezenas de instrumentistas, cantores e compositores, entre eles nomes como Muddy Waters, chamado de "Pai do Chicago blues". Tudo isso influenciaria a chamada Invasão Britânica no início dos anos 1960, mas essa já é outra história...

Foto: Zé Carlos de Andrade
Ao raiar do século XXI, as regras do jogo mudaram, a própria música negra se redefiniu, contudo Chicago continua sendo reconhecida além do epíteto de berço do blues e do jazz, pois ressignificou essa ligação primordial, estendendo seus laços com o funk e o soul (até mesmo o RAP), algumas das vertentes exploradas na música de Omar Coleman. Nascido nesse 'berço de ouro', contudo o cantor e gaitista de 51 anos amplia territórios, pois se conecta na mesma prateleira de artistas do blues/ soul revival como Charles Bradley, Sharon Jones & The Dap-Kings e Gary Clark Jr. De todo o modo, esqueça qualquer comparação — basta ele emitir uma frase no microfone e fica fácil perceber sua qualidade. 

Foto: Zé Carlos de Andrade
O músico norte-americano se apresentou nesta quinta-feira (22) no Sgt. Pepper's, em Porto Alegre, sua segunda vez na capital gaúcha, em mais uma promoção do Clube do Blues. Na banda base que acompanhou, nomes conhecidos do blues nacional: Igor Prado (guitarra), Luciano Leães (teclados), Edu Meirelles (baixo) e Ronie Martinez (baixo), quarteto que começa o show em alta rotação — ainda sem a atração principal — ao som de “Something You Got”, uma tema de Chris Kenner, cantor e compositor de R&B baseado em Nova Orleans (que morreu em 1976, com apenas 46 anos), e uma daquelas canções que já ouvimos em dezenas de versões, mas que sempre cai muito bem como abre-alas para uma apresentação desse calibre. Lembre-se, temos um embaixador da música de New Orleans em Porto Alegre, ele se chama Luciano Leães (o pianista gravará dois álbuns por lá em 2024), portanto, o show começa nesse encontro entre Chicago e NOLA. Outro detalhe significativo: essa formação já se reuniu diversas vezes ao longo dos anos, sempre dando suporte para vários nomes da música norte-americana que passaram pelo Brasil: Willie Walker, Whitney Shay, Cerissa McQueen, entre outros, uma garantia com selo de qualidade, além da certeza de ouvirmos improsivos e um sabor diferente em cada palco por onde passam.  

Foto: Zé Carlos de Andrade
Virando a página logo no início, Omar Coleman começa os trabalhos com uma das faixas que o definem, “Born and Raised”, música que batiza seu álbum  de 2015, lançado pelo tradicional selo Delmark. Se estivéssemos apenas vendo um foto de Coleman (coloque o botão play no mute), vestido todo de preto, óculos escuros e com um boné do Chicago Bulls, é mais provável que qualquer desavisado o relacionasse com um artista do hip-hop, pois, seja pelo despojamento ou postura no palco, o cantor e instrumentista se distancia dos padrões pré-estabelecidos do blues, o que declaro como outra de suas virtudes. Omar tem o mesmo timbre de voz dos grandes nomes do gênero, assim como a harmônica entre seus lábios materializa mais a simplicidade do que o virtuosismo, soando muitas vezes como um naipe de sopros com carimbo soul. Quando toca a gaita de boca, a harmonia parece ser mais importante do que os solos, algo que definitivamente me conquista num instrumentista. Às vezes preferem tocar a panderola e deixar a harmônica no bolso, balançando ao ritmo da música e batendo o instrumento contra seu corpo. 

Foto: Zé Carlos de Andrade
No repertório, mesclas de clássicos do soul sempre presentes na boca do povo — “Let’s Stay Together” e “Take Me to the River” (Al Green); “Stand By Me” (Ben. E. King); “My Girl” (Smokey Robinson) e “Hey Pocky A-Way” (The Metters), essa com participação do saxofonista Ronaldo Pereira). Em “Mustang Sally” (Mack Rice), os mais atentos perceberam uma breve citação no riff da guitarra de Igor Prado a "Smell Like a Teen Spirit", o que revela o espírito de mistura e diversão envolvido entre os músicos. No comando das operações, Maestro Omar muitas vezes dita os breaks e estende os finais das versões, regendo os instrumentistas e determinando quando quer ouvir os solos de Igor Prado ou de Luciano Leães, uma promessa de ineditismos em cada releitura.  

Foto: Zé Carlos de Andrade
O blues também deu o ar da graça na sua releitura de “Chicken Heads” (Bobby Rush) e numa das canções símbolo do gênero em todo mundo, “Sweet Home Chicago” (Robert Johnson), um tema que não necessariamente fala sobre o destino, mas principalmente sobre a jornada. E quando pensamos na jornada que nos trouxe ao atual status da música mundial, ainda é incrível pensar que, mesmo com a grande mídia disponibilizando cada vez menos espaço para o blues, o funk (americano) e o soul, às vezes temos o privilégio de assistir artistas desse calibre ao vivo e tão de perto. Assim, a cada novo encontro no Sgt. Pepper's, revitalizamos uma sensação de contentamento e conforto, como se sempre estivéssemos em casa no Clube do Blues, como de fato estamos. 

Foto: Zé Carlos de Andrade

Foto: Zé Carlos de Andrade

Foto: Zé Carlos de Andrade


ÚLTIMA COBERTURA:

THE PRETENDERS - PORTO ALEGRE, 18 DE MAIO DE 2025

| Foto Laura Aldana | | Por Márcio Grings Fotos Laura Aldana | Final de domingo, uma chuva fina cai sobre Porto Alegre. A pé, cruzo a Aven...