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quinta-feira, 10 de abril de 2025

URIAH HEEP — PORTO ALEGRE, 10 DE ABRIL DE 2025

| Uriah Heep no Opinião. Foto: Rafael Cony |
| Review Márcio Grings Fotos Rafael Cony |

O Uriah Heep é o principal algoz num dos clássicos da literatura inglesa, o romance "David Copperfield" (1850), escrito por Charles Dickens (1812-1870). Ele é um puxa-saco mentiroso e enganador, se faz de humilde e amigável, para roubar tudo o que pode de cada um que cruza na sua frente. A pergunta é: o que motivaria alguém a buscar inspiração num canalha desprezível como esse? Segundo o guitarrista Mick Box, o nome de Dickens estava em todos os lugares no início do ano de 1970, pois, naqueles dias, os ingleses recordavam o centenário de sua morte. Assim, graças a efeméride e, envoltos na gravação do álbum de estreia, "Very 'Eavy... Very 'Humble", o Spice (como a banda era chamada), por sugestão de seu vocalista à época, David Byron, muda o nome para Uriah Heep.

Foto: Rafael Cony

De todo modo, como grupo musical, o Uriah Heep nunca foi desprezível. Longe disso, por conseguinte, ao raiar do novo século, muitas vezes é injustamente esquecido pela literatura do rock. Pioneiros em fundir o hard rock com o progressivo, entre outras infusões, a banda nunca alcançou o mesmo destaque de alguns coirmãos como Led Zeppelin, Deep Purple e Black Sabbath. Por outro lado, a exemplo de sua influência no cenário posterior, grupos como Iron Maiden —, que plagiou descaradamente o riff de "I Hear Voices" em "The Red And The Black", de "The Book of Souls (2015) — e, o Blind Guardian, que regravou "The Wizard", entre tantas outras bandas e artistas catequizadas pela sua influência, denotam a relevância da obra construída pelo Heep. Com mais de 40 milhões de álbuns vendidos ao redor do mundo, alguns LPs caíram na minha mão, tornando seus discos — principalmente a fase com David Byron — ligação direta com minha memória afetiva, tornando-a uma das bandas preferidas da minha adolescência.

E, como fã, até mesmo trabalhos contestados pela crítica, como "Conquest" (1980) — uma das minhas capas favoritas —, um álbum que ouvi centenas de vezes, décadas depois, certamente foi mal-entendido, assim como outras obras distintas. Um destaque está no bem-sucedido "Abominog" (1982) — mesmo com uma capa tenebrosa —, alinhado até a medula com o pop metal daquele período, trabalho que abriu às portas para uma nova geração de fãs.

Foto: Rafael Cony

Um possível fator responsável por alguma descrença no valor artístico do espólio da banda talvez esteja na contínua rotação de integrantes. Ao longo de 55 anos, mais de 20 músicos já passaram pelas fileiras do grupo, entre eles, membros da formação clássica — David Byron, Ken Hensley, Gary Thain e Lee Kerslake, além de nomes como Trevor Bolder, John Lawton e até Nigel Olson (baterista de Elton John, e único vivo entre todos os citados). Toda essa atividade produziu 25 álbuns de estúdio, uma trajetória longeva e repleta de camadas. Vale frisar: a presente formação que chega até Porto Alegre nesta quinta-feira (10) gravou os seis últimos álbuns de estúdio, tornando-se o mais estável de todos os quintetos em qualquer época.

Afora a necessidade de rótulo ou classificação, a música criada nessas mais de cinco décadas — principalmente nos anos 1970 — foi definidora para incrustar o Uriah Heep como patrimônio imaterial do rock. Aí está o ponto: a atual turnê — The Magician’s Farewell — reproduz com fidelidade o DNA dos melhores momentos dessa linhagem, com foco no período mais reverenciado e no espírito desse tempo, trazendo até nós uma apresentação fidedigna aos propósitos invocados. Assim, no palco do Opinião temos: o sobrevivente Mick Box (77 anos, guitarra e vocais de apoio, único membro da formação original e presente desde sua criação); Bernie Shaw (68 anos, voz, há 39 anos vocalista do Heep); Phil Lanzon (75 anos, um dos principais compositores do quinteto, teclados e vocais de apoio); Dave Rimmer (56 anos, baixo e vocais de apoio, substituto de Trevor Bolder, morto em 2013) e Russell Gilbrook (60 anos, bateria). 

Foto: Rafael Cony
Depois de apresentações em três capitais da América do Sul — Montevideo (4), Buenos Aires (5), Santiago (6), pela sétima vez os ingleses desembarcam no Brasil (o debute foi em 1989, no tour do álbum Raging Silence). Antes da capital gaúcha, o Rio de Janeiro (9) recebeu o primeiro show do atual tour. Porto Alegre já esteve no caminho do grupo outras duas vezes, 2014, no Teatro do Bourbon Country, e 2004, no mesmo local do evento de hoje, o Opinião.

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Foto: Rafael Cony
O SHOW

Antes de tudo, é necessário lembrar que pós Enchente de 2024, o Rio Grande do Sul novamente vive uma certa normalidade e, desse modo, os show internacionais voltam a circular por aqui. O Aeroporto Salgado Filho, por exemplo, ficou quase seis meses sem receber voos, devido aos danos causados pela catástrofe climática, como esquecer esse limbo? Com isso, celebremos o dia de hoje. 

Com um público em torno de 1000 pessoas (informação da assessoria do Opinião), a terceira apresentação do Uriah Heep na capital gaúcha começa com "Grazed By Heaven", de "Living the Dream" (2019), um F5 no setlist, atualizando o público com um fruto da safra mais recente. Gilbrook bate forte e, na companhia de Rimmer, formam uma cozinha pujante que conduz a rodada inicial num ritmo alucinante. É perceptível, Bernie Shaw nasceu para cantar no Heep. Ele tem o estilo, uma voz que representa 'todas as vozes do espólio' e capricha nos acessórios, vide o coldre preso a perna direita onde guarda o microfone. "Save Me Tonight", faixa de abertura do elogiado "Chaos and Colour" (2023), retrata o alinhamento do quinteto e define o tom pesado dos primeiros minutos. Logo depois, "Overload", de "Wake the Sleeper" (2008), mantém a tocha acesa na senda das produções mais recentes, prova de que eles continuam criando e apostando no aqui e agora. Com um permanente sorriso no rosto, Mick Box está em ótima forma, enquanto Phil Lanzon, com poses e gestos de um cientista maluco, há quase quatro décadas compõe e toca as teclas no grupo, se debruçando sobre seu instrumento ao estilo dos grandes musicistas do gênero (ele também é escritor, com dois livros lançados).

Foto: Rafael Cony

A comparação com o Deep Purple foi algo que sempre os assombrou, por mais que o Uriah Heep tenha pegado essa bola redonda, mas, na linha de passe, chutou a pelota com um efeito diferente. É o que penso quando ouço "Shadows of Grief", de "Look At Yourself" (1971), onde Lanzon brilha com sua técnica e atitude, batendo na liturgia do prog-rock e na dramaticidade dos teclados, uma volta aos velhos tempos. O sarrafo segue nas alturas em "Stealing", narrativa da vida pregressa de um fora-da-lei em fuga (é uma das minhas letras favoritas). Pinçada de "Sweet Freedom" (1973), essa bate forte nos detratores que julgam o Heep como um Purple de segunda linha, pois, lançado à frente de "Burn" (1974), clássico da era MK3, o Heep mostra que o trânsito rock and soul já corria das veias do grupo antes de Glenn Hughes adicionar esse mesmo tempero no caldeirão púrpura. O público esquenta e canta em uníssono os vocalizes: "uh, uh, uh, uh, ah, ah, ahhhh".  

Foto: Rafael Cony

"Hurricane", na linha do metal melódico, mais uma de "Chaos & Colour", escrita por Gilbrook, é um momento de baixa no set, pois há dezenas de temas superiores na discografia deles, inclusive na história recente. Qualquer equívoco é soterrado quando voltamos para a Terra Média através da magia evocada pelo dedilhado no violão de aço em "The Wizard". Antes do primeiro acorde ser disparado, Bernie aponta para seu colega e diz: "Ladies and gentlemen, my best friend, Mick Box". O sorridente vocalista, com um dos braços em volta dos ombros do guitarrista (vocês não acham que ele está a lata do Jerry Garcia, do Grateful Dead?), apregoa a mítica do mestre eremita, o vagabundo ancião contador de histórias. Poderia ser o mago Gandalf, de "O Senhor dos Anéis", mas essa criatura da letra tem uma mitologia própria, o que a torna ainda mais original. É uma das canções assinatura do Heep. Tocada sem a guitarra — no trecho mais pesado da música — como ouvimos no álbum "Demons and Wizards" (1972), a versão do Opinião faz jus ao espírito acústico das baladas progressivas.  

Foto: Rafael Cony

"Sweet Lorraine" possui um blend característico: mistura uma melodia pop/grudenta com a estranheza do sintetizador Moog, instrumento 'riffador' e solista — sacada de mestre do saudoso Ken Hensley, um dos mentores intelectuais da primeira encarnação —, escolha responsável por criar uma identidade singular ao quinteto. Pena que o teclado estava num volume mais baixo, fator que nos furta de absorver ao vivo o principal holograma desse tema. Desejaria ouvir na sequência "Return to Fantasy", faixa título do álbum de 1975, idêntica a linhagem de 'Lorraine' — com seus 'teclados filme de terror' — mas não foi o que aconteceu. Nada é perfeito.

Antes de tocar "Free 'n' Easy", de "Innocent Victim" (1977), o único aparte no set advindo do espólio de John Lawton, Bernie faz um discurso exaltando o rock feito nos anos 1970. E quem discordaria dele nessa noite de outono em Porto Alegre? Tocada mais rápida, é chumbo grosso disparado em alta octanagem, diferente da versão original. Repaginada para a turnê, vejo o head banging rolando bem em frente ao palco. No centro de tudo, Mick Box é pura pose e alegria. 

Foto: Rafael Cony

A ópera rock "The Magician's Birthday" traz o argumento que motivou essa turnê de aniversário e de uma suposta despedida das grandes giras. Estamos falando do indiscutível ápice da noite. Retorno ao espírito dos anos 1970, ao longo de seus mais de 10 minutos, a guitarra avança em pista livre como um automóvel potente em BR de asfalto bom. Foi minha porta de entrada com o Uriah Heep, o ano era 1985, e ouvi ela pela primeira vez por volta da 1h da manhã numa noite de inverno durante um programa de rádio, o Cultura Rock, da Cultura FM (Santa Maria/ RS). Gravada numa fita cassete, esse registro me abasteceu por um tempo. Trata-se de um blues rock, mas também há um flerte com o progressivo. Na gravação original, o tom satírico no backing do refrão: “Happy birthday to you/ Happy birthday to magician/ Happy birthday to you", a voz de apoio, lembra o yodel e os scats de Thijs van Leer em “Hocus Pocus”, clássico do grupo holandês Focus, gravado meses antes do álbum do Heep. Ao vivo, Bernie e Phil reconfiguram as vozes nesse trecho sem perder o brilho original.  

Foto: Rafael Cony

Á medida em que a música avança, entre vais e vens e sobreposições, a fantasmagoria dos teclados soam sinistras. Esse é o momento máximo de Mick no show, no longo solo, acompanhado apenas de Gilbrook, com Bernie, Dave e Phil ganhando um refresco. O guitarrista se diverte, abusa dos maneirismos, afunda o pé no pedal wah-wah e brinca com a plateia. Ele abusa dos tiques e maneirismos, toca como se manipulasse poções mágicas sobre o braço da guitarra, abendiçoando o público feito uma figura budística. Após o zigue-zague no longo trecho instrumental, as pontas são amarradas quando o baixo e o teclado retornam ao palco, com Bernie em estado de graça proclamando o amor como tábua de salvação. É um épico, "The Magician's Birthday" reverbera sua curvatura, propósitos e estilo até hoje. 

O sentimento de poder no riff de Mick Box continua evidente em "Gypsy", precursora do heavy metal (o Iron Maiden nasceu de músicas como essa), relato de um jovem apaixonado por uma cigana, um dos destaques de "Very 'Eavy Very 'Umble" (1970). No solo de Phil Lanzon, uma assombrosa tempestade dos teclados trovoa como um pesadelo. Em dado momento, Dave e Mick se escondem, cada um em laterais opostas do palco e, quando voltam à linha de frente, tocam os punhos de leve numa espécie de 'brodagem supergênios ativar'. Bernie, no centro da canção, entrega a alma para o público e passa aquela sensação de que ninguém cumpriria essa missão como ele. O Uriah Heep não brinca em serviço, até jogada ensaiada faz parte do mise-en-scène deles.

Foto: Rafael Cony

"July Morning" é grandiosa e insólita. Além de clássico absoluto, joia reluzente no álbum "Look At Yorself" e no "Uriah Heep Live" (1973), o tema ainda inspirou um ato de resistência dos búlgaros contra os soviéticos durante os anos 1980, e acabou dando o pontapé inicial num festival chamado Julaya. Todos os anos, no final de junho, pessoas de toda a Bulgária viajam para a costa do Mar Negro para acompanhar o nascimento do sol no primeiro dia de julho. Daí, envoltos num tardio espírito hippie, muitos desses viajantes acampam em barracas, se juntam em volta de fogueiras e acredite: "July Morning" é a principal trilha-sonora do encontro, cantada em coro como hino oficial dessa celebração. A transcendência da música escrita por David Byron e Ken Hensley, exalta a esperança do amor como símbolo da felicidade, da esperança de um recomeço e a consequente libertação dessa conquista. É vísivel que aqui temos outro pico da noite. A banda sai do palco, se despede, mas todos sabemos que haverá um ato final, é o que o público suplica. 

Gilbrook é o primeiro a voltar, começa fazendo uma marcação do bumbo e entrega o jogo do que vem pela frente. Tematicamente, "Sunrise" se une ao tema anterior, é uma das peças-chave para entender o som da banda inglesa: camada de vozes, órgão hammond saltando faíscas e as dinâmicas da guitarra. No início, a voz de Bernie soa cristalina, para logo depois sermos soterrados pelo volume ensurdecedor da banda, um foguete que nos leva até a apoteose de um show de rock and roll. 

Foto: Rafael Cony

O círculo se fecha em "Easy Livin'", que há exatos 50 anos, fez parte da trilha-sonora de "Um dia de Cão" (1975), filme estrelado por Al Pacino, ganhador do Oscar de Melhor Roteiro Original (ela pode ser ouvida bem no começo do filme). A inclusão comprova de como o Uriah Heep estava na crista da onda naquela década. A força poética desse tour de force é o desfecho dos sonhos para nos despedirmos do show. Afinal, frente as agruras da existência, quem não deseja uma vida descomplicada ao lado da pessoa amada?

Em uma de suas falas, Bernie Shaw deu a entender que a banda está compondo músicas para um novo álbum, sem data de lançamento, para alegria dos fãs ainda interessados em material inédito. O fato é que parte da primeira fila incluía alguns garotos com camisetas da banda (de todas as fases), cantando inclusive os temas gravados nos dois últimos discos. Será que ainda há esperança de o Uriah Heep continuar por aí? 

Foto: Rafael Cony

Depois de Porto Alegre, também poderão se despedir do grupo inglês os fãs de São Paulo (11), Curitiba (12) e Belo Horizonte (13). Em julho, The Magician's Farewell segue seu curso pela Europa, com shows agendados até o final do ano.

Cobertura: Grings Tours | Quando o Som Bate no Peito. Review: Márcio Grings. Fotos: Rafael Cony. Agradecimento: Paulo Finatto (Opinião Produtora) pelo credenciamento, suporte e assessoria.

Foto: Rafael Cony

segunda-feira, 23 de setembro de 2024

JOSS STONE — BELO HORIZONTE, 22 DE SEMBRO DE 2024

Foto: Romero Carvalho
| Por Romero Carvalho |

Não é segredo para quem acompanha o nosso podcast “Quando o Som Bate no Peito”, que voltará no próximo mês, a minha admiração imensa pela discografia e obra da cantora inglesa Joss Stone. Em um dos nossos episódios, falei da minha redescoberta de seus álbuns e de como ela produziu em 20 anos uma carreira sólida e artisticamente interessante. A cantora, que fez sua estreia em 2003, aos 16 anos, amadrinhada pela lenda do soul/funk Betty Wright, celebra em sua turnê Ellipsis estas duas décadas de estrada, em que teve até coragem para romper com grandes gravadoras e trilhar um caminho independente. Neste momento, ela está no Brasil e, aproveitando a vinda para o Rock in Rio, fez shows em Ribeirão Preto, Belo Horizonte e fará em São Paulo.

E preciso dizer: assisti-la em Belo Horizonte, num BeFly Hall bem menos cheio do que deveria, foi um arrebatamento musical. Que Joss Stone canta muito, compõe bem e escolhe com precisão o repertório são coisas bem celebradas. Mas sua presença no palco é avassaladora. Talento, carisma, simpatia, beleza, charme e conexão pessoal com a plateia em níveis estratosféricos. Posso dizer com segurança que é uma das maiores presenças de palco que já presenciei em minha vida. Se não for a maior. Soma-se a isso uma banda espetacular, cheia, com metais, backing vocalistas e tudo o que pede um bom show de funk/soul raiz. E raiz é a palavra pro show, que não tinha telão, cenário, nenhuma base pré-gravada ou clique. Era só música! 

Abrindo com seu grande sucesso de estreia, a funky Super Duper Love, Joss desceu do palco, foi para o meio do público e fez todos saírem de suas cadeiras. Avisou que era uma noite para se divertirem e dançarem à vontade. O local veio abaixo e ela já tinha total domínio da plateia. Quando os seguranças do espaço tentaram obrigar as pessoas a se sentarem novamente, a britânica interveio e exigiu o desobedecimento. Em pouco mais de 1h30, o baile seguiu com funks pesadíssimos, baladas soul no melhor estilo Al Green, funk-rock, reggae – ritmo muito presente no ótimo álbum “Water for your soul” – e seleções de clássicos da disco music, gênero que parece agradar os pequenos filhos da cantora.

Com muita generosidade, Joss Stone deixa todos os seus músicos brilharem no palco, incluindo números solo para cada backing vocal. Atendeu pedidos do público em cartazes que sugeriam canções e fez com que cada um próximo a ela tivesse uma conexão pessoal com a diva acessível. Ao final, um gesto já clássico em seus espetáculos, ela distribui girassóis para a plateia e arremessou um para mim. Se no site dela vende réplicas de cera dos girassóis arremessados, penso que vou emoldurar a minha linda flor real.

Joss Stone tem sido chamada de última diva branca do soul. Como no clássico do Tolkien, quando os elfos anunciam que não é mais o tempo deles, quase semi-deuses, na Terra Média, parece que também não estamos mais na era das divas. Mas enquanto trovejar a voz de Joss, o ritual de arrebatamento por esta divindade musical está garantido para quem tiver a oportunidade de estar em seus bailes. O girassol floresce. 

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024

OMAR COLEMAN — PORTO ALEGRE, 22 DE FEVEREIRO DE 2024

Foto: Zé Carlos de Andrade
| Por Márcio Grings Fotos: Zé Carlos de Andrade |

Cidade mais populosa do estado de Illinois, nos Estados Unidos, Chicago é também uma das mecas do blues, jazz e da música negra norte-americana. Quando o blues tomou conta das ruas da cidade em meados do Século XX,  em busca de um cenário repleto de oportunidades artísticas, músicos locais encorajaram os imigrantes sulistas a trocar o violão por guitarras elétricas. Completando o caldo, as letras das canções começaram a refletir a vida dos afro-americanos durante aquele período, transformando essa cultura em patrimônio internacional da negritude. Assim o blues sofreria uma de suas grandes transformações, forjando dezenas de instrumentistas, cantores e compositores, entre eles nomes como Muddy Waters, chamado de "Pai do Chicago blues". Tudo isso influenciaria a chamada Invasão Britânica no início dos anos 1960, mas essa já é outra história...

Foto: Zé Carlos de Andrade
Ao raiar do século XXI, as regras do jogo mudaram, a própria música negra se redefiniu, contudo Chicago continua sendo reconhecida além do epíteto de berço do blues e do jazz, pois ressignificou essa ligação primordial, estendendo seus laços com o funk e o soul (até mesmo o RAP), algumas das vertentes exploradas na música de Omar Coleman. Nascido nesse 'berço de ouro', contudo o cantor e gaitista de 51 anos amplia territórios, pois se conecta na mesma prateleira de artistas do blues/ soul revival como Charles Bradley, Sharon Jones & The Dap-Kings e Gary Clark Jr. De todo o modo, esqueça qualquer comparação — basta ele emitir uma frase no microfone e fica fácil perceber sua qualidade. 

Foto: Zé Carlos de Andrade
O músico norte-americano se apresentou nesta quinta-feira (22) no Sgt. Pepper's, em Porto Alegre, sua segunda vez na capital gaúcha, em mais uma promoção do Clube do Blues. Na banda base que acompanhou, nomes conhecidos do blues nacional: Igor Prado (guitarra), Luciano Leães (teclados), Edu Meirelles (baixo) e Ronie Martinez (baixo), quarteto que começa o show em alta rotação — ainda sem a atração principal — ao som de “Something You Got”, uma tema de Chris Kenner, cantor e compositor de R&B baseado em Nova Orleans (que morreu em 1976, com apenas 46 anos), e uma daquelas canções que já ouvimos em dezenas de versões, mas que sempre cai muito bem como abre-alas para uma apresentação desse calibre. Lembre-se, temos um embaixador da música de New Orleans em Porto Alegre, ele se chama Luciano Leães (o pianista gravará dois álbuns por lá em 2024), portanto, o show começa nesse encontro entre Chicago e NOLA. Outro detalhe significativo: essa formação já se reuniu diversas vezes ao longo dos anos, sempre dando suporte para vários nomes da música norte-americana que passaram pelo Brasil: Willie Walker, Whitney Shay, Cerissa McQueen, entre outros, uma garantia com selo de qualidade, além da certeza de ouvirmos improsivos e um sabor diferente em cada palco por onde passam.  

Foto: Zé Carlos de Andrade
Virando a página logo no início, Omar Coleman começa os trabalhos com uma das faixas que o definem, “Born and Raised”, música que batiza seu álbum  de 2015, lançado pelo tradicional selo Delmark. Se estivéssemos apenas vendo um foto de Coleman (coloque o botão play no mute), vestido todo de preto, óculos escuros e com um boné do Chicago Bulls, é mais provável que qualquer desavisado o relacionasse com um artista do hip-hop, pois, seja pelo despojamento ou postura no palco, o cantor e instrumentista se distancia dos padrões pré-estabelecidos do blues, o que declaro como outra de suas virtudes. Omar tem o mesmo timbre de voz dos grandes nomes do gênero, assim como a harmônica entre seus lábios materializa mais a simplicidade do que o virtuosismo, soando muitas vezes como um naipe de sopros com carimbo soul. Quando toca a gaita de boca, a harmonia parece ser mais importante do que os solos, algo que definitivamente me conquista num instrumentista. Às vezes preferem tocar a panderola e deixar a harmônica no bolso, balançando ao ritmo da música e batendo o instrumento contra seu corpo. 

Foto: Zé Carlos de Andrade
No repertório, mesclas de clássicos do soul sempre presentes na boca do povo — “Let’s Stay Together” e “Take Me to the River” (Al Green); “Stand By Me” (Ben. E. King); “My Girl” (Smokey Robinson) e “Hey Pocky A-Way” (The Metters), essa com participação do saxofonista Ronaldo Pereira). Em “Mustang Sally” (Mack Rice), os mais atentos perceberam uma breve citação no riff da guitarra de Igor Prado a "Smell Like a Teen Spirit", o que revela o espírito de mistura e diversão envolvido entre os músicos. No comando das operações, Maestro Omar muitas vezes dita os breaks e estende os finais das versões, regendo os instrumentistas e determinando quando quer ouvir os solos de Igor Prado ou de Luciano Leães, uma promessa de ineditismos em cada releitura.  

Foto: Zé Carlos de Andrade
O blues também deu o ar da graça na sua releitura de “Chicken Heads” (Bobby Rush) e numa das canções símbolo do gênero em todo mundo, “Sweet Home Chicago” (Robert Johnson), um tema que não necessariamente fala sobre o destino, mas principalmente sobre a jornada. E quando pensamos na jornada que nos trouxe ao atual status da música mundial, ainda é incrível pensar que, mesmo com a grande mídia disponibilizando cada vez menos espaço para o blues, o funk (americano) e o soul, às vezes temos o privilégio de assistir artistas desse calibre ao vivo e tão de perto. Assim, a cada novo encontro no Sgt. Pepper's, revitalizamos uma sensação de contentamento e conforto, como se sempre estivéssemos em casa no Clube do Blues, como de fato estamos. 

Foto: Zé Carlos de Andrade

Foto: Zé Carlos de Andrade

Foto: Zé Carlos de Andrade


terça-feira, 5 de dezembro de 2023

Paul McCartney — Belo Horizonte, 3 de dezembro de 2023

| Foto: Marcos Hermes |
| Por Romero Carvalho Fotos: Marcos Hermes |


“It’s long way to the finish when you've never been before” 

Queenie eye, do álbum “New”, de 2013.  

Nesta altura dos acontecimentos, vou presumir que todos que chegaram neste texto saibam o quão imenso é o GÊNIO Paul McCartney. E espero que, com essa abertura, pressuponham a minha relação intensa e amorosa com toda a sua obra. Muito do que sou se deve às suas canções, nestes brilhantes 60 anos de carreira. Num mundo de injustiças, algo se faz justo: o mais bem-sucedido artista pop de todos os tempos merece sê-lo. 

Há incontáveis formas de comentar o show de Paul — e ninguém ousa chamá-lo formal e friamente de McCartney —, na estonteante Arena MRV neste domingo, dia 3 de dezembro. Poderia, com conforto, falar da emoção de ver novamente, talvez pela última vez, o artista que canta a trilha sonora da minha vida desde sempre, aos 81 anos, esbanjando vitalidade e carisma, com um repertório impecável, banda perfeita — a que mais tempo toca com ele, inclusive — e um estádio lotado. A propósito, que bom ver um naipe de metais no palco com o Paul! Também é sempre possível ressaltar a dificuldade que envolve shows imensos: chegar cedo demais, esperar demais — com um raríssimo atraso mccartneiano pra começar o show — trânsito terrível ou, bem pior, a cada vez mais constante falta de educação e noção de parte do público, que parece não ter grande interesse em música, mas apenas em estar num macro evento, independente de quem seja. O espetáculo musical pouco importa, pois mais vale instagramar o momento e conversar alto o tempo todo. Dá vontade de perguntar se o show está incomodando. Isso, infelizmente, é cada vez mais comum. Muito diferente dos públicos dos shows que fui do Paul em 2010, em São Paulo, e 2013, em Belo Horizonte. 

| Foto: Marcos Hermes |

Mas preciso muito tentar relatar esta, que, repito, pode ser a nossa despedida do Macca no Brasil, pelos olhos de uma criança de oito anos e outra de seis. Como Paul é o artista da família, fomos à Arena com a escalação completa: esposa, que anualmente escuta toda a discografia do Paul em sequência, eu e os três filhos, sendo que Nandi e Lalita, oito e seis anos, iriam pela primeira vez. Todos “uniformizados”. Inicialmente, não tinha conseguido comprar os ingressos deles, mas a frustração era tanta que os avós cederam suas entradas. “Já vimos o Paul na última vez. Eles precisam dessa experiência”. E isso diz muito: ver o Paul não é ir a um show apenas. É uma catarse, um ritual de agradecimento coletivo, celebração da música pop de excelência, do legado do maior fenômeno popular do século XX, que atravessa e une gerações, do compositor que não descansa e não desiste de nos dar a sua presença ao vivo. Por três horas. Com 81 anos. Sem muito mudar o tom ou andamento das músicas. 

Nandi e Lalita estavam realmente muito empolgados e são filhos de pais realmente dedicados à obra do inglês. Lalita queria “Jet” e “Nineteen hundred eighty five”, clássicos do “Band on The Run” (1973), o álbum hit da casa. Wings é sua banda favorita. Nandi queria todas, especialmente “Hey Jude”, sua canção de estimação. Levá-los implica, logicamente, um esforço muito maior, com uma logística bem feita e muita paciência. Lalita sucumbiu ao atraso e acabou chegando ao show já muito cansada. Dormiu uma grande parte do espetáculo, mas acordou a tempo de ver o ‘medley dos medleys’, “Golden Slumbers/Carry that weight/The End” e pedir depois pra colocar em sua lista no Spotify. Ao final, comentou que queria que o Paul morasse em Belo Horizonte e fizesse show toda hora. Ela iria a todos. “Eu vi o Paul e ele me viu”. 

Nandi, por sua vez, explodiu de alegria, dançando alucinadamente o tempo todo. Em suas favoritas, sobretudo dos Wings, fazia questão de exaltar a sua felicidade de vê-las ao vivo. Quando veio “Hey Jude”, ele tratou o “na na na” com solenidade e reverência. Em seu olhar para o palco, vi o fascínio que a música desse senhor ainda desperta. A magia de suas melodias, de seu magnetismo, de sua simpatia ao, mesmo sem precisar, se esforçar para se comunicar com a plateia em português. É a lenda das lendas, o mestre dos mestres ali, a metros de distância, cantando, tocando com absurda competência baixo, guitarra, violão, mandolim e pianos. Nandi entendeu tudo isso e se expressou à sua maneira. “Hoje foi o melhor dia de todos”, disse ao final. E isso vale qualquer esforço de um show grande. Isso retribui todo o investimento em tratar a música como a divindade que ela é, capaz de conectar as pessoas, celebrar a vida, auxiliar na contemplação e meditação, ressignificar, sublimar sentimentos... Algo para se levar a sério. Música forja amizades (e as melhores) e abre um universo para cada ouvinte atento. “Take a sad song and make it better”.  

Mais uma vez: é possível que esta seja a primeira e última vez deles com o Paul. E eu não conseguiria falar do legado deste homem de uma maneira mais didática. Não há nada como isso. Foi lindo e lúdico ver o show pelo olhar deles. E se esta foi a última vez, “in the end the love you take is equal to the love you make”, Paul. 

Afinal, o tempo vale pro Macca? Porque nunca vai haver um mundo sem Paul McCartney. Ao menos um que valha a pena. 

"At the end of the end/ It's the start of a journey/ To a much better place/ And this wasn't bad/ So a much better place/ Would have to be special/ No need to be sad.

On the day that I die/ I'd like jokes to be told/ And stories of old/ To be rolled out like carpets/ That children have played on/ And laid on while listening/ To stories of old.

At the end of the end/ It's the start of a journey/ To a much better place/ And a much better place/ Would have to be special/ No reason to cry/ On the day that I die/ I'd like bells to be rung/ And songs that were sung/ To be hung out like blankets/ That lovers have played on/ And laid on while listening/ To songs that were sung.

At the end of the end/ It's the start of a journey/ To a much better place/ And a much better place/ Would have to be special/ No reason to cry/  No need to be sad/ At the end of the end"

— Letra epitáfio de “The end of the end”, do álbum “Memory Almost Full”, de 2007. Paul parecia não saber, mas havia ainda muita gasolina no tanque!    

Setlist Paul McCartney | Arena RMV, Belo Horizonte — 3/12/23

Can't Buy Me Love

Junior's Farm

Letting Go

She's a Woman

Got to Get You Into My Life

Come On to Me

Let Me Roll It / Foxy Lady

Getting Better

Let 'Em In

My Valentine

Nineteen Hundred and Eighty-Five

Maybe I'm Amazed

I've Just Seen a Face

In Spite of All the Danger

Love Me Do

Dance Tonight

Blackbird

Here Today

New

Lady Madonna

Fuh You

You Never Give Me Your Money

She Came in Through the Bathroom Window

Jet

Being for the Benefit of Mr. Kite!

Something

Ob-La-Di, Ob-La-Da

Band on the Run

Get Back

Let It Be

Live and Let Die

Hey Jude


Bis

I've Got a Feeling

Birthday

Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band (Reprise)

Helter Skelter

Golden Slumbers

Carry That Weight

The End

| Foto: Marcos Hermes |


segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

SEUN KUTI & EGYPT 80 – PORTO ALEGRE, 1° DE DEZEMBRO DE 2023

| Foto: Rafael Cony |
| Por Lúcio Brancato Fotos: Rafael Cony |

Assim como tem shows onde o som bate no peito e percorre cada célula do nosso corpo, existem outros que transcendem o físico e nos colocam em hipnose multissensorial. Quando temos essas duas possibilidades num mesmo espetáculo, podemos afirmar ter vivido uma experiência musical completa.

O show de Seun Kuti & Egypt 80, no Bar Opinião, em Porto Alegre, fez exatamente isso: trouxe uma força de ancestralidade musical mágica e contemplativa, onde sentimos o magnetismo terrestre e a flutuação sideral num mesmo espaço de tempo. Neste caso, nenhum exagero substituirmos a palavra show por ritual, pois o que assistimos na noite de sexta-feira foi um culto.

| Foto: Rafael Cony |
Filho mais novo do nigeriano Fela Kuti (1938/1997), Seun carrega e expande o legado cultural, musical e político do pai. Apresenta na sua forma mais legítima o que ficou conhecido Afrobeat, um crossover de temperos ocidentais do jazz, funk, rock e soul, com elementos da música tradicional africana, como o percussivo do Iorubá e os sopros do Highlife. É uma música cíclica, de longo tempo de duração, onde a intensa repetição de melodias pode ser comparada aos mantras orientais. Uma sensação sonora circular e elástica que vai se expandindo harmonicamente entre metais, tambores, guitarra, baixo e cânticos. Acrescente a tudo isso o próprio corpo como instrumento. Cada movimento no palco coreografa de forma visual o entendimento universal do que está sendo dito. Aqui nem sempre é necessário um idioma para conectar palco e plateia, a expressão corporal traduz qualquer linguagem. É toda essa soma de forças que a gente sente durante o ritual.

| Foto: Rafael Cony |

Quando Fela Kuti morreu em 1997, aos 58 anos, Seun com apenas 14 anos assume, a pedido do próprio, a liderança da banda Egypt 80. De lá pra cá, não só preserva a força da música, como também assegura a continuidade do ativismo social e político tão importante e necessário implementado pelo pai. Fela lutou e denunciou com sua arte toda opressão do povo da Nigéria, que passou por sangrentas batalhas e governos ditatoriais. Apontou o dedo para o ocidente contra toda exploração humana e tantas tentativas coloniais de apagar a cultura continental africana.

| Foto: Rafael Cony |

O recado é dado já no começo da apresentação. A Egypt 80 surge no palco – melhor, no altar – trazendo na formação um naipe de metais com trompete, sax tenor e barítono, bateria, guitarra, duas vocalistas e também dançarinas, e no baixo Kunle Justice, membro remanescente da formação original da banda. Com um tema instrumental aquecem a entrada de Seun Kuti, que chega ao rito para somar com sua voz, seu sax alto e teclados, um dos hinos mais fortes e marcantes compostos por Fela: Coffin for Head of State. Um épico que passa dos 20min, gravado em resposta ao feroz ataque policial de 1977 que literalmente destruiu a República Kalacuta – espécie de comunidade alternativa criada por ele em Lagos – onde morava com a família, membros da banda e onde também ficava seu estúdio e acervo. Tudo destruído e incendiado, pessoas espancadas, presas e a sua mãe arremessada de uma janela do segundo andar. Funmilayo Ransome-Kuti morreu em abril de 1978 por complicações deste ato. A capa do disco com mesmo nome, lançado em 1981, traz imagens de quando Fela Kuti deixou caixão na frente do quartel general de Lagos protestando e apontando mais uma vez os culpados de um terror inimaginável.

| Foto: Rafael Cony |
É toda essa carga que o herdeiro Kuti carrega e preserva durante as duas horas de culto. Em determinado momento comenta que quando viaja pelo mundo sempre perguntam em cada país se fala a língua local: inglês, alemão, português, espanhol, etc... Sua resposta? “Basta uma língua colonizadora que já tive que aprender.” Assim como o pai é ele quem rege cada nuance e variação de toda a banda. Como um líder nato – ou um chief – conduz com o corpo a intensidade e elasticidade de todo o conjunto. A pontuação do naipe de sopros é de uma indescritível pulsação que altera nosso próprio compasso, a hipnótica linha melódica da guitarra nos coloca no meio de um cilindro e a dinâmica batida dos tambores balança qualquer espectador que se achava sem nenhum ritmo. 

| Foto: Rafael Cony |
Não importa a sua crença, fé, gosto musical ou escolha política. O que temos aqui é uma chance única de conexão com uma ancestralidade cultural e a mais verdadeira e coerente manifestação política, social e musical que você pode ter contato. Seun Kuti & Egypt 80 reconectam o ser humano com sua essência livre, sensorial e contemplativa. 
| Foto: Rafael Cony |

| Foto: Rafael Cony |

| Foto: Rafael Cony |

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| Foto: Rafael Cony |

FITO PAEZ — ROSARIO (ARG), 02 DE DEZEMBRO DE 2023


Foto: Maximiliano Conforti
Foto: Maximiliano Conforti

Fito Paez desembarcou em Rosario (ARG) na noite de sábado (2), com a #EADDA9223, turnê que comemora os 30 anos de lançamento do disco "El Amor Después del Amor" (1992) — o mais vendido da história do rock argentino. Após 60 shows, a tour chega ao fim nos dias 15 e 16 de dezembro, em La Plata (ARG). Porém, antes de passar a régua, o músico não poderia deixar de visitar Rosario. E tocar na cidade é estar em casa. 

Foto: Maximiliano Conforti
Foto: Maximiliano Conforti
Por isso, fui com a mais alta das expectativas e consegui realizar um sonho: assistir Fito Paez pela enésima vez, a primeira em sua cidade natal. Após uma viagem meio planejada, meio na raça, não faltou emoção. Estar 'no quintal' do rosarino, diante de sua gente e seu público fiel, me parecia algo surreal. E foi.

Foto: Maximiliano Conforti
Foto: Maximiliano Conforti

O concerto começou com 30 minutos de atraso, no Ex Rural, espaço aberto no imenso Parque Independência. Inacreditavelmente o público pareceu compreender a ausência do artista no palco. Tirando palmas esparsas, a plateia não demonstrou desconforto com a demora. Eis que, às 21h30 o músico sobe ao palco acompanhado por uma super banda com sopros e percussão.

Foto: Maximiliano Conforti
Foto: Maximiliano Conforti

A entrega de Fito foi emocionante, mesmo que aparentemente o show seja previsível, pois reprisa o tracklist na exata ordem do álbum, mas traz algumas surpresas. Por exemplo, pouco antes da metade do espetáculo, a banda intercala um medley com músicas do álbum "Tercer Mundo", seguindo com as clássicas de "El Amor Después Del Amor".  

Foto: Maximiliano Conforti
Foto: Maximiliano Conforti
Bastante à vontade, como um filho pródigo que retorna ao seu quintal, Fito Paez conversa bastante, conta histórias e continuamente agradece ao público. A parte mais emocionante, sem dúvidas, foi a interpretação de "Al Lado del Camino", do disco Abre (1999). O tema surge numa versão mais lenta, reflexiva, forjando uma conexão incrível com o público. A música é autobiográfica e traz lembranças de passagens doloridas na vida do cantor (vale a pena ouvi-la e assistir à série "Amor y Musica", disponível na Netflix para entender). 

Foto: Maximiliano Conforti
Foto: Maximiliano Conforti
Em determinado momento, "Al Lado del Camino"é executada quase à capela, com breves notas ao piano, além do coro dos rosarinos. Aliás, a participação do público é assídua em quase todas as canções. 

Ao fim do show, Fito agradece a presença e a oportunidade de tocar em casa, diante dos seus. A função se repete nesta segunda-feira (4), às 21h, no mesmo Ex Rural, no Parque Independência, com ingressos esgotados. 

Foto: Maximiliano Conforti
Foto: Maximiliano Conforti

P.S.: Um fato que me chamou atenção foi a ausência de celulares no alto. Ao menos no setor onde eu estava (Campo, equivalente à Pista no Brasil). Os argentinos pareciam estar ali pela experiência, pelo artista e pelo show. Foi realmente uma surpresa bacana. #PeloFimDosCelularesNosShows


FITO PAEZ | EX ROSARIO, 2 de dezembro de 2023

El amor después del amor
Dos días en la vida
11 y 6
La Verónica
Tráfico por Katmandú
Pétalo de sal
Naturaleza sangre
Un vestido y un amor
Sólo los chicos / Nada más preciado / Gente sin swing / Tercer mundo / Yo te amé en Nicaragua
Ey, You!
Tumbas de la gloria
Nadie es de nadie / No bombardeen Buenos Aires
Al lado del camino
Circo Beat
Brillante sobre el mic
Ciudad de pobres corazones
A rodar mi vida

Bis:
Dar es dar
Mariposa tecknicolor
Y dale alegría a mi corazón

sexta-feira, 17 de novembro de 2023

RED HOT CHILI PEPPERS — PORTO ALEGRE, 16 DE NOVEMBRO DE 2023

| Fotos: Ton Müller |
| Por Márcio Grings Fotos: Ton Müller |

Antes de qualquer coisa, falando na primeira pessoa do singular, preciso dizer ao leitor: eu não sou fã do Red Hot Chili Peppers. A música do grupo norte-americano nunca orbitou na constelação musical ao qual faço parte como ouvinte. Claro, estou falando do meu toca-discos, da minha prateleira, daquilo que eu escolho ouvir nos meus domínios. Será? Todavia, é óbvio que como radialista — e ligado na programação das rádios — muitas vezes tive alguma canção do RHCP visitando meus dias, seja no trabalho ou como mero ouvinte. A exemplo disso, a década de 1990 foi um espaço de tempo em que Anthony Kiedis (voz), John Frusciante (guitarra e voz), Flea (baixo) e Chad Smith (bateria) tomaram de assalto o mundo e, canções como “Under the Bridge” e “Give It Away” de “Blood Sugar Sex Magik” (1991) foram incrustadas no nosso inconsciente. Entretanto, a banda não fixou sua âncora num marco temporal, ela seguiu adiante, sincrônica e relevante na música pop do nosso tempo. E, mesmo sem ser um devoto da música dos californianos, há um detalhe que me aproxima deles: minha esposa é fã do Red Hot Chili Peppers, com isso, durante as idas e vindas cotidianas, frequentemente seus discos rodam no CD player do carro. Tudo certo, sem levar em conta minhas preferências, trata-se de boa música.

Foto: Ton Müller

50 mil foram até a Arena do Grêmio para ver o último show da turnê brasileira, a segunda vez do grupo em Porto Alegre. Como o próprio nome da turnê nos sugere — a Global Stadium Tour — encontra nas multidões o seu púlpito e glória. Por outro lado, em vários momentos temos a sensação de que os músicos estão se apresentando num espaço reduzido, pois o palco (que é enorme, seguindo o protocolo dos shows em arenas) muitas vezes não é ocupado da forma que vemos em outros shows. E, na contramão do pop, o que poderia soar como anticlímax para os fãs radiofônicos ou quem sabe entediá-los pelos excessos e arroubos instrumentais, esse desenho roga uma das boas sacadas da montagem atual. Na redução dos espaços é proposto um show mais intimista — e, com isso, conseguimos enquadrá-los no telão e no nosso campo de visão centralizados em frente à bateria. Reconhecidos como virtuoses de seus instrumentos, é inegável perceber a interação olho no olho e o ambiente fértil para improvisos. Em dado momento, só o protocolar Anthony Kiedis parece ausente dessa festa, encontrando nas laterais do palco um respiro para as passagens instrumentais. Aos 61 anos, o vocalista está em ótima forma e vê-lo ao vivo amplia os adjetivos e confirma suas limitações em interagir com a plateia. Lembro que talvez seja pelo uso de uma bota ortopédica na perna esquerda. Talvez... 

Foto: Ton Müller
A cozinha do RHCP, que sempre esteve na gerência de Chad (62) e Flea (61) impressiona pelo entrosamento e zoação no palco, com luzes de sobra no baixista, um dos mestres no seu instrumento. Ao decorrer da noite, temas como “Can’t Stop” e “By the Way” são um convite para o ulular da massa, assim como “Scar Tissue” (vejo lágrimas em olhos próximos), “Snow (Hey Oh), “Soul to Squeeze”, “Strip My Mind” e “Californication” ganham o coro de milhares. Ouvir releituras infiltradas como “The Guns of Brixton”, do Clash, antes de “Eddie” ou “Havanna Afair", dos Ramones, até pode surpreender os desavisados, assim como ”What is Soul”, do Funkadelic, se transforma sem atalhos numa música do Red Hot. O setlist não é previsível, Lados B e surpresas podem aparecer. É o caso “Terrapine”, de Syd Barrett (Pink Floyd), na voz de John Frusciante, o que me arranca um breve sorriso. Hoje aos 53 anos, o guitarrista que voltou a ocupar seu posto em 2019, é um dos destaques do show, consequência de sua extensa paleta de cores como instrumentista, além da capacidade de produzir ótimas camadas vocais de apoio.

Foto: Ton Müller

Os fãs mais devotados festejaram a inclusão de "Me and My Friends" no show de Porto Alegre, apresentação que foi a mais longa e com mais músicas (21) da perna brasileira da Global Stadium Tour. Antes do bis, um dos públicos mais rumorosos deste ano na capital gaúcha em shows do gênero implora pela volta dos músicos ao palco. Eles retornam e se despedem com uma tríade de canções de “Blood Sugar Sex Magik” — o funk rock “Sir Psyco Sexy”, a divertida releitura de “They’re Red Hot”, de Robert Johnson, e o inevitável epílogo com “Give It Way” — afinal, toda a boa banda precisa de uma  "Satisfaction" como às na manga, e o RHCP a utiliza como cartada final —, o que obviamente nos joga na lembrança do videoclipe na MTV e da ascensão do grupo ao estrelato, lugar de onde merecidamente nunca mais saíram. 

De Porto Alegre, o Red Hot Chili Peppers parte para Santiago, no Chile, onde se apresenta na belíssima Movistar Arena.

Agradecimentos a Ton Müller (fotos) e Ana Bittencourt (minha consultora sobre o setlist do RHCP em Porto Alegre). 

Foto: Ton Müller

RHCP | Arena do Grêmio, 16 de novembro de 2023

Jam

Can’t Sop

Scar Tissue

Here Ever After

Snow ((Hey Oh))

Terrapin

Havana Affair

The Guns of Brixton\ EddieParallel Universe

Soul to Squeeze

Me & My Friends

Strip My Mind

Get Up and Jump\ Tippa My Tongue

Tell Me Baby

Californication

What Is Soul?

Black Summer

By the Way


Bis

Sir Psycho Sexy

They're Red Hot

Give It Away

Ao postar o setlist da apresentação, despedindo-se da série brasileira da turnê, dessa vez o grupo homenageou Rita Lee e Ieda Maria Vargas, a eterna Miss Universo gaúcha.

 



Foto: Ton Müller


Foto: Ton Mülle

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